Longe dos perigos de guerra, tomam-se por certo, cafés matinais entre um croissante e uma ocasional conversa, o jornal que se desfolha e por onde se lêem notícias sobre a economia nacional, o futebol do fim-de-semana e longe dali, como se de outro planeta se tratasse, uma suposta guerra numa outra cidade do continente europeu do leste, um "espaço continuum" de uma história a que já todos se habituaram a ouvir.
Ainda não havia sido divulgada a notícia do ataque à cidade, não se sabendo assim dessa forma do perigo em que o contingente português estaria envolvido.
Um dia normal como tantos outros não fosse o facto da fraqueza começar a tomar conta do meu corpo. O silêncio reina ali por entre os corredores à já alguns minutos. Não sei se me haviam deixado sozinho ou se tal como eu, estariam a recuperar um pouco das limitadas forças do corpo humano. Olho em frente do meu esconderijo feito de um canto de sombras que fez naquele quarto onde estava, a porta mantém-se semi-aberta. Certeza teria que não estava fechada nem a ser vigiada, ou pelo menos, julgava eu.
Arrastei-me sorrateiramente, qual leão por entre a savana em busca da sua presa, para junto da porta. Julgo que deveria ter alguma costela partida fruto dos avanços marginais dos meus raptores, sentia dores ao respirar, mas acima de qualquer dor estava o meu desejo em voltar, era o regresso que se fazia presente na minha mente e sentia-lhe o odor a invadir-me a pele. Estiquei a mão e muito devagar fui abrindo ainda mais aquela porta. Não sabia se aquela madeira seca e áspera ao toque, iria fazer qualquer ruído ao ser deslizada nas suas dobradiças daquela forma, lenta. Apostei ainda mais numa cartada única aquela minha tentativa, por isso continuei e à medida que fui abrindo o objecto que me separava daquele corredor, fui espreitando medida a medida, um espião do ocidente que procura sombras, vozes, vultos vivos e que se mexem, mas tudo o que encontrei foi o silêncio, espaços vazios, cortinas que dançam ao sabor do vento que entra por entre as janelas de vidros partidos, pedaços de pedra e gesso que descansam em paz pelo chão dos corredores.
Reúno as poucas forças que tenho e levanto-me da minha posição de segurança, encosto-me a uma das paredes daquele corredor e lentamente caminho rumo à saída. Olho para cada centímetro daquele espaço, as ombreiras das novas divisões que se aproximam e aguardo que dali saia o carrasco que me levará de novo à agonia das sombras. Silêncio. Parecia que agora toda a cidade havia conspirado contra mim, ouvia a minha respiração difícil. Um quarto ainda com uma cama de casal, apenas dela restava a armação de ferro enferrujado, uma divisão vazia do que outrora havia acomodado agora com cartuchos vazios de balas, sala a sala, divisão a divisão ia galgando aquele espaço a medo mas sem o demonstrar na face que se revestia de herói. Estava incrédulo por ainda não ter sido descobertos os meus passos. A porta, o degrau final que me separava das mãos de quem não queria o meu bem de uma cidade desconhecida e onde os seus perigo seriam iguais ou ainda maiores, e de repente... a maçaneta começa a girar, a transpiração que me escorre do rosto sabe-me a medo, olho em volta em busca de um espaço onde possa me esconder, tudo se faz longe para um corpo que se arrasta, viro-me sabendo ter sido descoberto e aguardo que o destino seja justo e rápido, um vulto se aproxima e a cidade continua em silêncio. Nesse instante, trémulo como se tivesse sido abandonado num fiorde polar, sinto-me a ser acolhido por uma manta que se atirou por cima das minhas costas, umas mãos que me tocam lentamente. Esse sentimento de solidão esvaziava-se por entre a compaixão de alguém que me acolhia naquele palco sem actores, pois esses decidem o rumo de uma história, e esta, fazia-se sem que pudesse escolher os capítulos que a compõem.
Olho por entre os ombros tentando descobrir a quem aquelas mãos pertenciam, e por entre um olhar de tristeza queimado pelo tempo e um sorriso de quem admirada estava por me ver ainda com vida, a moça que havia me limpo o rosto ali estava de novo, firme, e como era bom ver um rosto com sentimentos de novo. Tomou um dos meus braços e fez sinal para a porta. Não sabia ainda o que havia acontecido aos outros mas decidi que fosse o que acontecesse daquela porta para o outro lado, apenas poderia ser para o melhor. Seguimos cuidadosamente, a porta abriu-se e pisamos terra incerta rumo a um destino que novamente desconhecia por completo. Seguimos rua abaixo até ao primeiro beco por entre os prédios desfigurados. Aos poucos vindos do nada vislumbrava olhares por entre as frestas do tempo de janelas e portas, vidas que ainda se fazem e se comemoram mas sempre por entre o medo e a curiosidade que os fazia manterem-se longe de mim, um estranho numa cidade de estranhos.
Paramos junto de uma porta de madeira de carvalho, forte, sentia-lhe a dureza no rosto enquanto permanecia encostado a ela para descansar. Abriu-se e quase que caía não fossem os reflexos rápidos da moça que me ajudava. De alguma forma e por algum motivo havia sido abandonado pelos guerrilheiros e poupado pelos mesmos. Estava agora nas mãos de alguém que sentira pena de mim, sim, esse era o sentimento correcto, pena, pois não o fosse e ninguém correria o risco de me resgatar daquele local sabendo que poderia também ser fruto num cesto de terror e morte. Deitou-me num colchão improvisado de cama, para mim naquele instante bem mais confortável do que qualquer cama de um hotel de cinco estrelas. Oiço-a a falar com alguém e a agitação a tomar-se daquele lugar. Por entre murmúrios consigo ouvir claramente a palavra “portuguese” e “reporter”. Ali falava-se inglês mas o conforto e o deleite daquelas molas nas minhas costas tiveram o efeito contrário à decisão da minha fuga e fechei os olhos na esperança que pudesse adormecer um pouco e repor o meu sossego.
(Continua...)
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