segunda-feira, março 03, 2008

XXI - MEDO

Nas asas da saudade deixo-me vagear até as cortinas que me escondem o amanhecer. O caos que vejo lá fora corta-me a respiração, sufoca-me o intimo ao mais leve roçar de pensamentos julgados perdidos, instantes que outrora se fizeram tão próximos que desejei esconder.

Abro as cortinas, deixo voar no céu da noite este alvoroço desmedido que se estende por toda a minha pele e passeia em busca dele por entre um olhar desesperado. Conheço muito bem Ricardo, outrora companheiro da minha melhor amiga e não fora o seu acidente trágico certamente estariam juntos neste momento. Sei que não perderia esta liberdade de sentimentos que povoam aquela cidade. A sirene irrompe a azáfama que já se sente. Estaríamos a ser mobilizados para uma retirada estratégica. Certamente numa questão de minutos toda a unidade BTS-4 estaria já fora do aquartelamento e a caminho de um local seguro. Teria de me apressar não fosse o caso de me deixarem por entre a confusão que se instalara.

Rapidamente pego na roupa amarrotada e perdida em cantos do quarto e visto-me tapando a pele que à pouco se sentia tocada de uma forma apaixonada e desejada. Deixo à mercê dos meus pensamentos o destino daquele Homem que me fizera Mulher, que me inundara de um fervor intenso inflamando a minha pele de beijos e segredos por onde o toque dos seus lábios havia traçado um trilho ao baú fechado até então das minhas emoções.

Dando uso a todos aqueles anos de treino militar saio do meu quarto carregando já todos os meus pertences. Sabia perfeitamente que em missões como aquele nunca se deveria desfazer a mochila. Nunca era propriamente uma visita pacífica a uma ilha mediterrânica. Corro desesperada por entre a praça, os olhos saltam de farda em farda tentando reconhecer o seu rosto que me encanta e se torna agora fruto da minha agonia. Com a mochila as costas entro no seu quarto... vazio... aquela ausência que se perde no silêncio daquele espaço sucumbe aos meus impulsos suspensos e leva-me os joelhos à gélida calçada de cimento como que esperando por um sinal teu que me traga de novo a esperança já perdida.

Sinto em mim, em mim Mulher que algo de errado terá acontecido. O tremor das explosões que sinto virem da cidade, o ruído das armas que não se fazem longe dali anunciam que todos estão já de alerta e que naturalmente estariam a preparar-se para o êxodo. Não era o caso deste que fizera alcova do meu quarto crescente. Algo de muito errado acontecera. Sinto-o como a expressão do meu rosto quando a força da saudade me eleva os olhos ao céu.

Corro em direcção ao ponto de controle de entrada e saída do aquartelamento, carinhosamente baptizado por ele como “checkpoint”, o local onde esperaria por mim se algo acontecesse, tal como me havia sussurrado enquanto me julgava a dormir. Em meu peito arde agora o fogo de uma estrela cadente ansiosa pelo reencontro. Não o fazia como encantador de promessas quebradas por isso estremecia provocando-me uma sã loucura na alma. Pelo caminho presenciava um triste alvoroço de viaturas que chegavam com camaradas da minha unidade severamente punidos por uma batalha que não era a nossa. É inacreditável saber-nos num território hostil, estranho, apenas com intenção de imparcialmente auxiliar aqueles que se cruzam inesperadamente por entre balas perdidas, rostos de uma miséria tão actual, e ainda assim fazem das nossas fardas alvos preferenciais do seu egoísmo selvático e depravado pela conquista de algo que nunca fora deles.

Não consigo mais conter a melodia que o meu impulso ansiava e num instante, ao ver-me sozinha apenas com o soldado que se escondia por detrás da guarita, sabia-o ausente das instalações, perdido com a sua insana paixão por um prefácio a preto e branco capturado na lente da sua camera.

Num rápido e mordaz instante sinto o impacto na minha face de um objecto pesado que me faz cair para cima do corpo do soldado cujo nome nem me tinha dado ao sentido de o conhecer. Atordoado, de mim transpiram pedaços de desespero, resquicios de loucura e delírio desejando que tudo aquilo se transforme num pesadelo que me fará acordar nos braços de Melinda. De olhos postos neste luar que me aconchega as lembranças, as únicas vozes que oiço são de ódio e os olhos que me abraçam desferem golpes covardes no meu corpo que não lhes confere qualquer risco ou perigo. Não sei se preferia agora aquele destino ou o soldado que me acompanhou nos seus derradeiros instantes de missionário militar.

Retiram-me do veículo deixando-o ao abandono, sem respeito algum seu habitante, despojando-o da sua farda e botas, como se de um mendigo se tratasse. Não consigo correr, muito menos caminhar, ainda combalido do acidente e dos golpes que me infligiram, levam-me de rastos como um animal até um camião que ali junto a estrada aguardava por aqueles guerrilheiros, de que guerra seriam eles, essa era uma história que certamente muitos gostariam de conhecer. Não seria inédito ver ovelhas tresmalhadas de um exército por si só desmembrado, transformado em mercenários que buscam na guerra apenas e só o seu proveito próprio. Desses sim tinha receio pois nenhuma regra ou respeito se aplicava a eles. Temia pela minha vida.

(Continua...)

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