terça-feira, março 04, 2008

XXII - NAS TUAS MÃOS

Afundo os meus olhos dentro de mim mesmo enquanto minh’alma se entranha mata fora em busca de auxílio. Sinto-me a ficar ausente de mim mesmo sem perceber muito bem o que está a acontecer. Um sede fremente inunda-me enquanto o calor não cessa de aumentar como um lençol de fogo que me cobre a pele. Sinto-me cansado, muito cansado e já não sinto, oiço, nem os olhos se abrem mais mesmo que se procurassem num voo de fuga o fim do pavor que me desfaz os sentidos.

O barulho característico de um motor, os solavancos incertos de uma estrada de terra, estou com uma manta por cima do meu corpo e uma mochila por baixo da cabeça, sinto a fivela que a fecha. Abro lentamente os olhos, ao meu lado, homens de vestes incertas, fardas rasgadas, fumam como se um espólio tivessem capturado com a certeza de cada exalação, brincando. De certeza que perdi os sentidos e ao me ver dessa forma traçaram para mim um destino certo, provavelmente um que lhes traga lucro. Serviria eu de moeda de troca? Era esse o meu receio no momento. Sinto-me quebrado, desnorteado, fecho os olhos e deixo-me ficar, humedeço os lábios secos que me quebram a sede certa.

O dia nasce solarengo muito embora a ilusão do seu brilho desvanece por entre as areias quentes do deserto em que se havia transformado Sarajevo, e como uma miragem, num ambiente tragicamente mágico, reina o aroma único do desespero entorpecido por entre a cortina de fumo e fogo que varre as formas e contorce as planícies áridas da cidade.

Deixo-me ir deslizando pela praça sem saber muito certo o que fazer. Perdi a noção da realidade e o papel que me levara até ali. Paro... ali no centro do meu mundo olho ao meu redor... rostos cegos e silenciosos correm num festim silencioso, reflexos escaldantes, estagnados por fora, turbilhões e ventanias quentes por dentro. Eram os olhos, apenas os olhos que refrescavam o calor que subia na minha essência, um longo crepúsculo de desejos explícitos, invisíveis á superfície da alma que me despertam o ameno nascer de um dia que esperava ser tudo. Não posso deixar me vencer pela inércia, não posso. Olho ao meu redor de novo e procuro o carro que ainda na noite anterior havia sido testemunha da magia de um beijo. Corro, corro como se a minha vida dependesse disso em direcção ao mesmo. Não me importa o desrespeito da missão, qualquer acção deve ser comungada da sua reacção, e a minha, era partir em busca do Homem que se alongou à espreita da janela do meu longo Inverno, e ousou ao ritmo da chuva morna que se aninha no regaço das árvores, arrefecer a saudade das longas tardes de verão, oferecendo-me a luminosidade da Primavera que deixei partir numa manhã sem sol.

No brilho do meu olhar levava gravada a imagem do rosto de Ricardo, entregando-me apaixonadamente ao encanto dos seus traços, das linhas das suas mãos fortes com que me acariciava o cabelo na leveza de umas asas de borboleta. Saio como um sopro, rápida e segura na derradeira vontade de o encontrar. Deixo para trás anos invisíveis de silêncio cheios de sentimentos e emoções perdidas no tempo.

Corro neste imponente circo da vida em busca do meu equilíbrio sobre a fina fronteira do horizonte que me separa o dia da noite. As luzes que me guiam os passos fazem-se de faróis que ofuscam o publico que nesta plateia assiste ao meu desespero, sem rede, mas com certezas...

(Continua...)

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