segunda-feira, março 31, 2008

XXX - SOZINHO

Indiferente ao rumo dos dias e das noites daquela cidade, o mundo gira no seu eixo trazendo aos seus habitantes a naturalidade de um novo amanhecer. A azáfama natural da corrida das grandes cidades, o trânsito, as pessoas que se amontoam junto ao vermelho das suas vidas que as separam de uma margem para a outra das intermináveis avenidas das intermináveis cidades.

Longe dos perigos de guerra, tomam-se por certo, cafés matinais entre um croissante e uma ocasional conversa, o jornal que se desfolha e por onde se lêem notícias sobre a economia nacional, o futebol do fim-de-semana e longe dali, como se de outro planeta se tratasse, uma suposta guerra numa outra cidade do continente europeu do leste, um "espaço continuum" de uma história a que já todos se habituaram a ouvir.

Ainda não havia sido divulgada a notícia do ataque à cidade, não se sabendo assim dessa forma do perigo em que o contingente português estaria envolvido.

Um dia normal como tantos outros não fosse o facto da fraqueza começar a tomar conta do meu corpo. O silêncio reina ali por entre os corredores à já alguns minutos. Não sei se me haviam deixado sozinho ou se tal como eu, estariam a recuperar um pouco das limitadas forças do corpo humano. Olho em frente do meu esconderijo feito de um canto de sombras que fez naquele quarto onde estava, a porta mantém-se semi-aberta. Certeza teria que não estava fechada nem a ser vigiada, ou pelo menos, julgava eu.

Arrastei-me sorrateiramente, qual leão por entre a savana em busca da sua presa, para junto da porta. Julgo que deveria ter alguma costela partida fruto dos avanços marginais dos meus raptores, sentia dores ao respirar, mas acima de qualquer dor estava o meu desejo em voltar, era o regresso que se fazia presente na minha mente e sentia-lhe o odor a invadir-me a pele. Estiquei a mão e muito devagar fui abrindo ainda mais aquela porta. Não sabia se aquela madeira seca e áspera ao toque, iria fazer qualquer ruído ao ser deslizada nas suas dobradiças daquela forma, lenta. Apostei ainda mais numa cartada única aquela minha tentativa, por isso continuei e à medida que fui abrindo o objecto que me separava daquele corredor, fui espreitando medida a medida, um espião do ocidente que procura sombras, vozes, vultos vivos e que se mexem, mas tudo o que encontrei foi o silêncio, espaços vazios, cortinas que dançam ao sabor do vento que entra por entre as janelas de vidros partidos, pedaços de pedra e gesso que descansam em paz pelo chão dos corredores.

Reúno as poucas forças que tenho e levanto-me da minha posição de segurança, encosto-me a uma das paredes daquele corredor e lentamente caminho rumo à saída. Olho para cada centímetro daquele espaço, as ombreiras das novas divisões que se aproximam e aguardo que dali saia o carrasco que me levará de novo à agonia das sombras. Silêncio. Parecia que agora toda a cidade havia conspirado contra mim, ouvia a minha respiração difícil. Um quarto ainda com uma cama de casal, apenas dela restava a armação de ferro enferrujado, uma divisão vazia do que outrora havia acomodado agora com cartuchos vazios de balas, sala a sala, divisão a divisão ia galgando aquele espaço a medo mas sem o demonstrar na face que se revestia de herói. Estava incrédulo por ainda não ter sido descobertos os meus passos. A porta, o degrau final que me separava das mãos de quem não queria o meu bem de uma cidade desconhecida e onde os seus perigo seriam iguais ou ainda maiores, e de repente... a maçaneta começa a girar, a transpiração que me escorre do rosto sabe-me a medo, olho em volta em busca de um espaço onde possa me esconder, tudo se faz longe para um corpo que se arrasta, viro-me sabendo ter sido descoberto e aguardo que o destino seja justo e rápido, um vulto se aproxima e a cidade continua em silêncio. Nesse instante, trémulo como se tivesse sido abandonado num fiorde polar, sinto-me a ser acolhido por uma manta que se atirou por cima das minhas costas, umas mãos que me tocam lentamente. Esse sentimento de solidão esvaziava-se por entre a compaixão de alguém que me acolhia naquele palco sem actores, pois esses decidem o rumo de uma história, e esta, fazia-se sem que pudesse escolher os capítulos que a compõem.

Olho por entre os ombros tentando descobrir a quem aquelas mãos pertenciam, e por entre um olhar de tristeza queimado pelo tempo e um sorriso de quem admirada estava por me ver ainda com vida, a moça que havia me limpo o rosto ali estava de novo, firme, e como era bom ver um rosto com sentimentos de novo. Tomou um dos meus braços e fez sinal para a porta. Não sabia ainda o que havia acontecido aos outros mas decidi que fosse o que acontecesse daquela porta para o outro lado, apenas poderia ser para o melhor. Seguimos cuidadosamente, a porta abriu-se e pisamos terra incerta rumo a um destino que novamente desconhecia por completo. Seguimos rua abaixo até ao primeiro beco por entre os prédios desfigurados. Aos poucos vindos do nada vislumbrava olhares por entre as frestas do tempo de janelas e portas, vidas que ainda se fazem e se comemoram mas sempre por entre o medo e a curiosidade que os fazia manterem-se longe de mim, um estranho numa cidade de estranhos.

Paramos junto de uma porta de madeira de carvalho, forte, sentia-lhe a dureza no rosto enquanto permanecia encostado a ela para descansar. Abriu-se e quase que caía não fossem os reflexos rápidos da moça que me ajudava. De alguma forma e por algum motivo havia sido abandonado pelos guerrilheiros e poupado pelos mesmos. Estava agora nas mãos de alguém que sentira pena de mim, sim, esse era o sentimento correcto, pena, pois não o fosse e ninguém correria o risco de me resgatar daquele local sabendo que poderia também ser fruto num cesto de terror e morte. Deitou-me num colchão improvisado de cama, para mim naquele instante bem mais confortável do que qualquer cama de um hotel de cinco estrelas. Oiço-a a falar com alguém e a agitação a tomar-se daquele lugar. Por entre murmúrios consigo ouvir claramente a palavra “portuguese” e “reporter”. Ali falava-se inglês mas o conforto e o deleite daquelas molas nas minhas costas tiveram o efeito contrário à decisão da minha fuga e fechei os olhos na esperança que pudesse adormecer um pouco e repor o meu sossego.

Há momentos em que a paz ganha forma e volume e atrevo-me a ser o reflexo do “eu” ás avessas saciando o caos que me queima. Foi de palavras em punho que me lancei rumo a este céu, o ultimo dos limites dos sonhadores. Na bagagem de muitos sonhos, tantos sonhos que nem eu próprio conheço o rosto de todos, nem sei sequer se os mesmos existem, é nessa magia que me revejo na magia das palavras proferidas junto de um rosto, esse sim claro como o sol da manhã e oiço o doce esvoaçar de anjos que me acariciaram os lábios e serenaram o meu olhar. Mas que me adianta saber-te sentir se perto de mim tudo o que resta não loucuras exageradas e fantasias que de nada me servem...

(Continua...)

sexta-feira, março 28, 2008

XXIX - A CULPA

Não sei se dou um passo em direcção à porta, não sei se tropeço nos degraus dos dias ou se apenas vivo assim colada à sombra do chão fértil das incompreensões das minhas sensações e medos.

Sinto o relento da madrugada que se aproxima, enxugo a chuva nocturna de lágrimas que solto por entre uma gargalhada oca e demente, arrancada com as unhas ao amanhecer passado. São leitos calmos de rios por entre marés tristes que ganham asas nesse mar de angústia no qual me sinto perdida.

Não permito ao pensamento discernir onde se acabam as margens lamacentas do meu egoísmo que concedi para ancorar sorrisos. Deixo-me afogar no esquecimento de outros que me são queridos, aprofundo o desencontro do corpo e da alma, separados na dor, como a noite se afasta da quebra de luz da aurora.

Levanto-me e aproximo-me do espelho do quarto. No semblante límpido do espelho das emoções, vislumbro o vazio de mim fechado no vazio de um turbilhão confuso que se abre aos meus olhos. Revejo-me no reflexo convexo da dolorosa ausência de forças capazes de amar. Perdi o corpo na ilusória batalha de mim mesma com o sonho, quando desertei do conflito antecipado, sem autorização da vida.

Foi o precipício sem fundo que ganhei, que agora sofro, nesta guerra que pintei de vermelho escuro, o sangue seco, com que tingi o branco da bandeira desfraldada, em honra do choro que me roubou a alma. Entreguei-me ao vento cigano e arrasto-me por aí entre pedra e plumas. Hoje perco-me do tempo, escorrego entre a apatia distante de um segundo e o outro. Não encontro o espaço do minuto seguinte porque não ouso estender a mão ao futuro. Temo este futuro.

Perigosamente desafio-me, iço as velas do sofrimento, pulo o inglório muro da lógica, golpeio a consciência e adormeço a ilusão agarrada à escuridão de uma pérfida ignorância auto-imposta. Desculpo a revolta que fiz nascer em mim e aponto o dedo acusador na minha direcção pela pressa insaciada de viver sonhos perfeitos, fui eu que implodi os ponteiros que me ajustavam ao relógio da vida, deixei que a letra desta musica pela qual tanto ansiava já num tempo passado numa ilusão achada como impossível, me cegasse... sou culpada de crime hediondo.

Esta centelha de fios de luz que se estendem ao infinito leva-me embalada e sinto-me arrepiar ao roçar da lembrança das minhas mãos nas tuas. Sinto-me culpada por estares longe de mim, em perigo.

(Continua...)

quarta-feira, março 26, 2008

XXVIII - SILHUETAS

Às escuras vejo a vida como se de uma tela de cinema se tratasse, vi o princípio e receio em saber o fim. Improviso, sem falhas, não sei se pertenço ao enredo, mas procuro os meus documentos, algo que me identifique como jornalista. Os meus movimentos assustam o argumentista deste diálogo de mudos. Agarra-me, empurra-me, tremo, procuro desesperadamente um espaço de sombras onde me abrigar da violência, grito com a minha voz junto ao meu ouvido “-Jornalista... jornalista!!!”. Talvez tenha sido a semelhança sonora da palavra com a sua homóloga inglesa que tenha feito o meu medo cessar os seus ataques, talvez tenha sido a porta que se abriu e neste espaço virgem que não existe, fico recostado num tempo que não conta em parte alguma e observo à distância uma proeminente figura que se mantém na sombra e articula palavras que desconheço. Os dois voltam-se e saiem deixando-me na vontade de uma fuga, um mergulho inesperado para um oceano que gira numa tempestade mas com maiores probablidades de secar as gotas que me escorrem pelo rosto.

Por instantes misturo-me na envolvência deste silêncio escolhido, entre vozes que me circundam e beijos que recordo.

É de olhos postos nesta fresta de tempo que nos antecede, que abrimos os olhos, e nos entregamos à vontade e doce magia que brota de dentro e nos extasia as forças que dormentes, de novo acordam.

Oiço novos passos, um serpentear de uma areia movediça que se atravessa pelo corredor trazendo a serpente até mim. Com alguma dificuldade em abrir os olhos pela luz que invade o espaço onde me quedo, presencio o entrar de alguém, cigarro na boca, sinto-lhe o odor bem característico e familiar. Gosto do prazer de fumar pela ideia louca que me serve os pensamentos e me oferece novas ideias. Instantes passaram e nenhum movimento ainda foi feito por aquela figura que ali se mantém inerte junto à porta. Inesperadamente as sombras ficam claras como o raiar do dia, sinto que o perigo naquele instante não se fazia, algo mais esta personagem pretendia de mim. A força dos punhos contrastava claramente com a força da estratégia e uma diplomacia unilateral.

“ – American reporter?” – questionou-me por entre um travo no seu cigarro. Fiquei renitente na resposta... “ – Portuguese in a Peace Mission!” – ouviu a minha resposta e ali ficou a mirar-me como um falcão para a sua presa. Fiquei na dúvida se esta mulher que ali estava teria sido a mesma que me havia refrescado a face.

Voltou a sair deixando atrás de si a porta aberta. Conseguia distintamente ouvir os passos que se afastavam sucessivamente. Fiquei um pouco incrédulo e hesitante. A saída ficava ali ao fundo desse corredor e deixar-me assim seria um convite para uma fuga, ou seria isso talvez que esperassem dando-me um destino ainda mais cruel para me anunciarem como espião ou mandatário do inferno, pormenores que agora não me eram importantes, mas cuja fatalidade poderia ser evidente. Cresce em mim uma batalha interior entre o medo e a loucura desmedida. Tento a fuga e consigo a mesma, e o evento seguinte? Não tento a fuga e espero por uma oportunidade mais segura ou que me resgatem. E quais as possibilidades de tal acontecer estando porém face a uma que agora se mostra tão real quanto as balas que oiço lá fora!!??

Vou tentar...

Afloro entre a rebeldia escondida, olho o final de tarde que se avizinha e deixo um bilhete, um recado, um sorriso enigmático ao rasto avermelhado do sol que me aquece o rosto. “Espero-te encontrar em breve...” solto num murmúrio de entrelinhas que o corpo me dita em cada inspiração diferente.

Solto os cabelos e disfarço-me de outra, atirando para os pés os pensamentos e os sentimentos. Não me seduzes, permaneço imóvel mesmo quando surges nos meus pensamentos, apenas fito a porta que quero entreaberta para mais rápida sair em tua busca, retirar-te da escuridão e adivinhar os enigmas em que te destapo.

Olho de novo lá fora o tempo que escurece, vestida de ti, sento-me sobre o tempo, dá-me um sinal de ti...

(Continua...)

segunda-feira, março 24, 2008

XXVII - EMOÇÕES


Sinto um cansaço extra por todo o meu corpo. Sento-me por breves instantes e olho o céu do fim da tarde, resguardo-me nos pensamentos que guardo entre o coração e os joelhos. Não me imaginava neste querer incontido e louco, sofrega e sedenta dentro da minha pele pelo homem de alguém com quem já partilhei o quarto de camarata. O meu corpo transpira agora num misto de desejo e de medo que apenas se irá saciar na hora das grandes decisões.

Raquel é a minha melhor amiga, porém, mesmo não estando com ela muitas vezes desde que aconteceu o seu acidente. Por muito que não queira pensar nisso, sempre senti que o que acontecera a ela, a mim se devia em muito. A relação dela com Ricardo estava agitada antes dessa missão. Há muito que ele insistia com Raquel para que as suas missões chegassem a um fim, pelo menos no campo de “batalha” e passassem a ser mais diplomáticas, naturalmente um trabalho de secretária e encontros de protocolo.

Oito dias antes da saída encontramo-nos num café pelos lados de Belém. Falava-me que queria tentar tudo naquela relação, que Ricardo estaria em vias de a deixar. Ela compreendia as razões dele sabendo que suas vidas teriam de encontrar um ponto comum de estabilidade para assim continuarem em conjunto, mas com ela em constante perigo nas missões em que participava, era motivo mais do que suficiente para esse ponto comum deixar de existir pela enorme pressão que exercia.

Disse-lhe que não poderia ser dessa forma e que não deveria deixar os medos dele interferir na sua vida pessoal e muito menos no que ela fazia. Sei que estava a ser egoista, querendo apenas ter a minha amiga comigo. Sei que hoje pago esse preço na mesma moeda que ela pagou, agora no papel inverso ao seu.

As vozes silenciam-se e tudo o que agora oiço, gritos desesperados que ecoam por entre os becos da cidade, balas que arrancam pedaços do cimento que outrora sustentou edifícios, luzes que ecoam por entre as grades da janela, clarões laranja que desbravam a paisagem.

O Sol desce numa luz ténue deixando atrás de si esse rasto avermelhado relembrando-me as linhas que me sossegam o espírito naquele instante. Há treze tempos atrás, deitado junto de Melinda, a Lua prometia o brilho no céu e as nuvens estendiam-se como um tapete para os sonhos. Estava demasiado fraco para tentar fosse o que fosse por isso aconcheguei as pernas, fechei a janelas das conversas e corri as cortinas sem rosto e parti rumo a um mundo que conhecera de olhos vendados, indo ao encontro do encanto e da loucura. Para lá desta tela, oiço novamente passos, a porta que se abriu, um silêncio que pairou, uma espera que perdura em vezes sem conta, e eu, fugindo aos impulsos dos meus receios, soltando tremores disfarçados de bravura, inventei a serenidade nas minhas mãos e aguardei a decisão do meu carrasco que ali, parado, aguardando o convite para me apontar a sua arma.

Lembro, relembro, recordo e espero os próximos momentos que me trazem um sabor amargo na antecipação de também eu figurar numa fotografia.

(Continua...)

sábado, março 22, 2008

XXVI - ARCO-ÍRIS

Chegada ao aquartelamento de Gorazde os blindados do batalhão estavam já ao longo da estrada junto às instalações em manobras de preparação para a sua saída em direcção à cidade de Sarajevo. Na praça, soldados feridos que haviam sido apanhados desprevenidos ora no fogo cruzado ou nas minas anti pessoal PMA-3, eram evacuados por helicóptero para Roma, em Itália. Salto do jipe como gazela ferida e corro em direcção à sala de briefing do Quartel General. Estavam já todos reunidos e a discutir os preparativos de auxílio à população que ali se encontrava encurralada. Ajuda havia já sido solicitada a Vitkovici e a Ustipraca onde se encontravam destacadas outras unidades em missão de paz.

Encostei-me na parede fria junto a porta, com mãos de veludo afasto os cabelos que caiem derrotados por entre o meu rosto entristecido. Oiço-os ao longe a debater o caminho a tomar, as unidades que seguem, e tudo aquilo parece-me um sonho do qual sei mais uma vez irei acordar.

“-Cabo, o que faz aqui?” – Aquelas palavras eram-me dirigidas de uma forma ríspida e certa como uma baioneta antiga que se cruza com o seu inimigo em pleno campo de batalha “-Comandante, temos duas baixas numa emboscada junto a cidade, uma das quais presumo ser o nosso fotógrafo de campanha que estará raptado.” – a rapidez com que explodi naquelas palavras deixou o comandante de campanha surpreendido comigo. O seu olhar cruzava-se com o meu cabisbaixo e derrotado pelo carrossel de emoções em que havia já se passeado. “-Cabo, recomponha-se, refresque-se e iremos em busca do nosso soldado perdido. Não deixamos ninguém para trás.” – a linha suave com que havia sido cozida aquelas palavras rebentara nos meus olhos, agora lacrimejantes, como carícias de saudade para ti, gotas que sulcam o vale do meu peito abrigado numa espécie de dor.

Retiro-me para os meus aposentos em passo acelerado “-Cabo! Saímos em trinta minutos e conto consigo!”. Parada no corredor, esboço um olhar por cima do ombro e aceno com a face por entre um sorriso rasgado por um agradecimento. Não sei o porquê deste pedido, mas julgo que o Comandante havia compreendido a importância desse tal soldado perdido. Era um homem sábio, sóbrio de pensamento e justo nos seus actos e palavras. Servia junto dele à já oito anos tendo cumprido seis missões similares a esta. Não queria pensar que havia de ser já transparente para ele, mas por agora, apenas Ricardo ocupava o meu pensamento.

Regressada ao meu quarto, dispo a roupa com a pressa de uma amante e deixo cair sobre mim a mão pesada da àgua quente nos meus ombros. O sabor do vapor que me envolve como braços longos que correm ao meu encontro por onde escorrem carícias e delícias a que chamo de beijos. Suspiro, choro, cai-me a alma num profundo lago de lágrimas que desabafa do meu peito. Caminho as mãos por entre os vales que fazem sombra e apraz o corpo em desejo, caminho as mãos pelas planícies e olho-me no reflexo, ali, em brilho de ansia, o destino desliza, já não há palavras que me embalem. A chuva quente que por mim escorre é tão apenas um sorriso cúmplice que de olhos fechados trocamos e selamos com um ultimo murmúrio em uníssono. É o silêncio das nossas bocas que detem a beleza de todas as palavras por dizer.

Sonhei um sonho desenhado na contracapa do céu, vi rascunhos e folhas soltas perdidas na leveza das nuvens que cobriram de fantasias o meu sorriso. Entreguei-me nua às tuas palavras, fiz Amor com elas, rebolei-me nas prosas inacabadas e fintei as horas em que a saudade me roubava o sabor da tua pele, nos momentos que descansavas ali junto de mim.

À mercê da brisa que levou o tempo do teu verbo, invento frases sem sentido, deito-me com adjectivos nocturnos nesta cama vazia de gramática amarrotada. Sei que contigo beijei metáforas que suspiraram docemente aprisionadas por entre os meus dedos enquanto me masturbavas em linhas e parágrafos de loucuras impensadas que voaram, desapareceram por aí, não me deixando sentir-lhes o aroma que me consola o espírito.

No peito ainda salta a emoção, o desejo de virar a página e ler uma outra passagem, talvez uma rima, um silêncio, um carinho, ou apenas o momento de te reencontrar e de novo te beijar.

Com a alma em alvoroço, aquieto em vão o desalinho que dança e rodopia no meu pensamento, enxaguo a água que escorre por mim e visto-me de cara lavada e corpo fresco para sair em busca deste sonho de insana paixão, o meu arco-íris que sei, sinto, ainda respirar...

(Continua...)

XXV - AUSÊNCIA

O ruído é ensurdecedor. Este é o meu pequeno mundo de horror. No chão de pernas cruzadas, como que a ouvir uma história contada por um avô ansioso por brilhar aos seus netos, olhar de criança calada de vamos ver no que vai dar não sabendo ela como a história iria terminar ou a influência que a mesma iria ter no seu futuro, ali figurava eu, passivo, enublado, acorrentado a tremores sempre ouvia passos na minha direcção do lado de fora da porta daquele minusculo quarto. A guerrilha sem dúvida tomara a cidade de assalto. Poucas vezes vira a guerra como sendo actor principal num palco como este. O conflito sempre o vira nos papeis e nas fotografias, nunca havia-me borrado de pó ou de lama nem estado prisioneiro. O desconforto do chão de cimento, duro como aquela realidade não me deixava delirar por momentos passados.

Oiço passos de novo... calo os pensamentos. Nada me garante o ar que venha a inspirar momentos depois. A porta abre-se. Levanto a face como que encarando o meu carrasco. Uma moça claramente de traços muçulmano, carregada de pó nos seus cabelos pretos, carrega uma bacia de agua e um pano. Ao fundo do corredor que se encontra com outra qualquer divisão que desconheço, oiço vozes exaltadas, gestos rápidos de armas que discutem umas com outras. Julgo que serei eu o motivo daquela discussão.

“-American?” perguntou-me a moça enquanto levava o pano ao recipiente com água e de lá o tirou para em seguida o encostar à minha face ensanguentada onde jazia um corte profundo. Acenei com um não, a dor aguda que se fez sentir por breves instantes retirou-me qualquer capacidade de vocalizar um qualquer som ou grunhido. Apenas o silêncio era o que saía do meu rosto, agora um pouco mais a descoberto retirada a camada de pó que sentia agarrada aos poros.

A rapariga, claramente jovem levantou-se e por breves instantes fixou o olhar no meu rosto, como que contemplando-me pela última vez. Olhei-lhe de volta, o retorno do seu olhar havia ja desaparecido. Saiu fechando a porta deixando-me de novo sozinho no meu pequeno mundo, como um largo vazio.

Afogam-se as palavras plácidas de mim, não mais as sinto como há instantes. Antes de formuladas asfixio-as em rasgados pensamentos a embalar o meu destino em ti. Grande sorriso aberto e franco, grande o sentimento que acolho em mim e me acolhe a expressão dos dedos que descem pela porta daquele jipe na descoberta calada de algo que não se fez, para meu jubilo. Prendo todo o alfabeto nos meus braços e levanto-me, retorno ao meu veículo e confundo-me no sentir que extravasa calado em folhas brancas que piso a cada passo vazio de mim. Vejo-me ao reflexo do vidro que ali me separa da selva do espaço macio, sei que endoideci de tanto te querer como um devaneio a solta, uma vontade a galope desalmado que surgiu vindo não sei de onde como um vento que espalha brisas de perfume em nós.

Regressamos de novo às instalações da missão. Sabia que o caminho inverso não era possível de ser feito naquele momento sem o auxílio militar correspondente. Foram mantos e mantos de palavras que cobriram os meus pensamentos durante aquela viagem de retorno, sabendo que estarias além terra, sozinho talvez, ferido ou não, longe da tarde quente que havias amanhecido no colchão inventado contigo.

Silencio enternecido, derrotado, este que me encerrava os lábios. Era agora esse silêncio que me ditava o caminho... “-Não se preocupe. Havemos de o encontrar e resgatar para junto de nós!”- foram essas as exactas palavras que o furriel que conduzia o jipe me acenderam um pouco a esperança de encontrar Ricardo. Afastei o olhar do meu pensamento de que estas palavras já não existem, não posso fechar este livro sem ler o capítulo final e assim por isso, acendo a ilusão sábia da esperança e é entre os nossos lábios que iremos continuar a história...

(Continua...)

quinta-feira, março 20, 2008

XXIV - TRILHOS DE SILÊNCIO

Percorro contigo as mesmas ruas, sinto-te ao meu lado. Olho em busca do teu olhar e estou sozinha. Os degraus de um tempo que passa avidamente entre nós, dão-nos a certeza da presença ausente um do outro.

Tento adiantar-me ais dias atrasando as memórias cativas em mim sabendo-as futuras e com sede de as viver. Não posso acreditar e por isso faço batota comigo mesma. Corro à frente do sonho que pela noite me abraça e me fala ao ouvido de um amor real e que por isso não pode morrer. Sem qualquer receio corro, corro, passeio-me pela vida quando a manhã abre a porta e sigo a fantasia que a noite não me deu e que os dias não sabem que existe.

Grito o teu nome pela penumbra de um espaço mágico inventado, entre o crepúsculo do dia e os brilho dos arbustos, como se as nossas almas se tocassem. É alvorada de uma paixão que não quero interrompida, encruzilhada de lábios que se tocam e olhares desenhados sem qualquer sossego. É entre o encanto e o desencanto do fim do sonho que os nossos tempos se fundem e as lágrimas rasgam-me o rosto num suspiro de saudade que morre aos poucos.

É saudade, é desespero, são fantasias inventadas, partilhadas, dor imensa que me foge à carícia desejada, um beijo ansiado de uma presença ausente, num tempo que temo não ser mais o nosso... são gargalhadas, riso histérico da miséria humana que me deixa aliviada, é um rosto desconhecido que me envolve num desespero aliviado. Ajoelho-me ao mistério do caminho que tomaste e choro, soluço, rio com gargalhadas soluçadas. Sei-te vivo, sei-te vivo.

Penso-te nas linhas bambas do meu ser, por entre pensamentos surdos que esvoaçam na introspecção da minha meditação. Cruzo-me contigo em fugazes encontros de brumas e segredos enquanto caminho em terrenos espinhosos sem rumo certo e distinto. A espuma vermelha de um oceano de terror derrama-se por entre as esquinas do meu corpo. Envolvo os pés com as mãos e aguardo o meu destino que o peito demonstra sem qualquer sossego. Já pouco me resta sem qualquer receio, a angústia, a maré que me envolve a alma e que desapareceu num ápice porquanto me levam para longe de ti. São momentos vazios como noites de insónia estes que me trazem à memória o rosto de Melinda.

Neste recanto de um mapa desconhecido sei-me chegado ao destino desconhecido. Fazem-me sair soltando por entre berros gritos de guerra e ameaças concretizadas sobre o meu corpo. Várias vezes sinto na pele os fios de certeza bordados a areia que se atravessa por debaixo das minhas botas. Dirigem-me para um edifício sem insígnias, placas, letras ou cores. Apenas reconheço ao perto o edifício da Biblioteca de Sarajevo, um monumento inspirado no Alhambra de Granada e eregido à convivência multicultural até a artilharia sérvio-bósnia o reduzir a escombros já no passado ano de 1982. Inimaginável a história perdida por entre milhares de preciosos livros e documentos que muçulmanos, sérvios ortodoxos, croatas católicos e judeus haviam conservado ao longo dos séculos. Um história perdida que agora revivia na minha pessoa.

Mergulhei na escuridão de um corredor como gado empurrado para as brasas de uma marca de um dono que jamais conhecerá. Assim me sentia ausente mas terrivelmente presente numa peregrinação ao palco de horrores de um genocídio feito num só volume.

Fecho de novo os olhos, e consigo ouvir a melodia da tua voz, mesmo quando dela sai poesia sem palavras.

(Continua...)

segunda-feira, março 10, 2008

XXIII - O MEU DESESPERO

Migalhas, pedaços, estilhaços de alguém que fui, limalhas de um tempo que se fez gotas de um mar que sou mas que em areia seca se tornou, e agora, que me refaço, agora que me reencontro por entre partículas desconhecidas, cada uma com história em livros de séculos vividos em capítulos de murmúrios que me fizeram por entre a noite, onde os ainda oiço ao meu ouvido, escorrega-me por entre os dedos, preso em duas mãos, um futuro que nasceu em mim qual afluente secreto nos subterrâneos da pele, corro... corro sem alma em sangue vivo de vida pingando por entre um emaranhado de pegadas perdidas em busca dessa tempestade que me apazigua a alma e me preenche o sentido.

Abro os olhos e adormeço os meus desejos... quero ir alienada, coerente na razão aguentando a tempestade que me atravessa o coração, à procura do que é certo. A estrada está cortada. Dois veículos da EUFOR barram a passagem. Pedem-me para regressar, a cidade está sitiada. Tento-lhes explicar a importância da minha viagem, algures naquela estrada faz-se à deriva quem eu procuro. Insisto que devo passar mas as ordens são específicas e ninguém deve passar “- Nunca deixamos alguém para trás, nunca abandonamos um soldado, nunca viramos as costas a quem de nós precisa e não vai ser hoje que irei fazer isso sejam as vossas ordens quais forem.” Gritei com as fagulhas da alma pendurada no céu e um brilho nos olhos que me denuncia o desespero. Nas vozes soltas que o silêncio guarda, olham-me como personagens que somos num palco cujo enredo se faz com forças desconhecidas “- Não deixaremos nunca ninguém, deixe o carro e entre no jipe. Iremos em busca de quem procura!”

Aquelas palavras com poderes de magia aquecem-me o ânimo e sossegam-me o desespero. Entro no jipe e comigo acompanham-me 3 soldados da EUFOR, todos armados. Arrancamos repentinamente como a poeira que se levanta por entre os trilhos que galgamos. “-A cidade está fechada. Hoje não é um bom dia para se andar por aí sozinho. Existem muitas brigadas da guerrilha e esses atacam qualquer um apenas para poderem usar como moeda de troca.” – dizia-me o soldado enquanto percorríamos a estrada.

Num momento indefinido, ali ao longe mas ainda assim tão perto, fora da estrada, um dos veículos do aquartelamento. Conseguia identificar-lo pelo emblema e o código de identificação pintado na carroçaria. Não queria acreditar o que os meus olhos viam, uma silhoeta desfocada no local o condutor, inerte. Fecho os olhos e invade-me uma sensação amarga na boca. Sob a alucinação de cinco luas de brilho, os meus olhos perdem-se na imensidão do céu. O jipe para, saiem os soldados em reconhecimento de quem eu sei que não quero que seja. O tempo pára. Tão subtil e frágil é o sonho que nos toca ao de leve pois ao acordar lento da manha seguinte, pode ele já não se fazer presente. O sorriso... o teu sorriso que me falou nos silêncios que me encantavam com as palavras que ousavas me escrever com os teus olhos. Como é bom saborear a cegueira que me entregas nas entranhas, vincada nos lençóis onde nos deitamos, abraçados ao calor ardente da nossa paixão. Não, não queria acreditar ter-te perdido, ali, sozinho. Ainda guardo o teu beijo comigo, ainda o sinto no céu da minha boca e por isso não podes ser tu aquele que ali se faz sem alma, não podes.

Retorna ao jipe um dos soldados em passo acelerado. Entra e enquanto alcança o rádio profere as palavras que não queria ouvir “-Está morto!”

O mundo fraqueja e num instante o principio faz-se de fim. Solto lágrimas que me ardem na pele e o meu corpo estremece ao lume que se ateou dentro de mim, a alma rende-se ao desespero, saio do jipe e corro a procura do que é certo.

Não.

Não preciso de te recordar, sinto-te comigo, habitas dentro de cada recanto de mim e não posso por isso te perder.

Corro... corro a procura do que é certo.

(Continua...)

terça-feira, março 04, 2008

XXII - NAS TUAS MÃOS

Afundo os meus olhos dentro de mim mesmo enquanto minh’alma se entranha mata fora em busca de auxílio. Sinto-me a ficar ausente de mim mesmo sem perceber muito bem o que está a acontecer. Um sede fremente inunda-me enquanto o calor não cessa de aumentar como um lençol de fogo que me cobre a pele. Sinto-me cansado, muito cansado e já não sinto, oiço, nem os olhos se abrem mais mesmo que se procurassem num voo de fuga o fim do pavor que me desfaz os sentidos.

O barulho característico de um motor, os solavancos incertos de uma estrada de terra, estou com uma manta por cima do meu corpo e uma mochila por baixo da cabeça, sinto a fivela que a fecha. Abro lentamente os olhos, ao meu lado, homens de vestes incertas, fardas rasgadas, fumam como se um espólio tivessem capturado com a certeza de cada exalação, brincando. De certeza que perdi os sentidos e ao me ver dessa forma traçaram para mim um destino certo, provavelmente um que lhes traga lucro. Serviria eu de moeda de troca? Era esse o meu receio no momento. Sinto-me quebrado, desnorteado, fecho os olhos e deixo-me ficar, humedeço os lábios secos que me quebram a sede certa.

O dia nasce solarengo muito embora a ilusão do seu brilho desvanece por entre as areias quentes do deserto em que se havia transformado Sarajevo, e como uma miragem, num ambiente tragicamente mágico, reina o aroma único do desespero entorpecido por entre a cortina de fumo e fogo que varre as formas e contorce as planícies áridas da cidade.

Deixo-me ir deslizando pela praça sem saber muito certo o que fazer. Perdi a noção da realidade e o papel que me levara até ali. Paro... ali no centro do meu mundo olho ao meu redor... rostos cegos e silenciosos correm num festim silencioso, reflexos escaldantes, estagnados por fora, turbilhões e ventanias quentes por dentro. Eram os olhos, apenas os olhos que refrescavam o calor que subia na minha essência, um longo crepúsculo de desejos explícitos, invisíveis á superfície da alma que me despertam o ameno nascer de um dia que esperava ser tudo. Não posso deixar me vencer pela inércia, não posso. Olho ao meu redor de novo e procuro o carro que ainda na noite anterior havia sido testemunha da magia de um beijo. Corro, corro como se a minha vida dependesse disso em direcção ao mesmo. Não me importa o desrespeito da missão, qualquer acção deve ser comungada da sua reacção, e a minha, era partir em busca do Homem que se alongou à espreita da janela do meu longo Inverno, e ousou ao ritmo da chuva morna que se aninha no regaço das árvores, arrefecer a saudade das longas tardes de verão, oferecendo-me a luminosidade da Primavera que deixei partir numa manhã sem sol.

No brilho do meu olhar levava gravada a imagem do rosto de Ricardo, entregando-me apaixonadamente ao encanto dos seus traços, das linhas das suas mãos fortes com que me acariciava o cabelo na leveza de umas asas de borboleta. Saio como um sopro, rápida e segura na derradeira vontade de o encontrar. Deixo para trás anos invisíveis de silêncio cheios de sentimentos e emoções perdidas no tempo.

Corro neste imponente circo da vida em busca do meu equilíbrio sobre a fina fronteira do horizonte que me separa o dia da noite. As luzes que me guiam os passos fazem-se de faróis que ofuscam o publico que nesta plateia assiste ao meu desespero, sem rede, mas com certezas...

(Continua...)

segunda-feira, março 03, 2008

XXI - MEDO

Nas asas da saudade deixo-me vagear até as cortinas que me escondem o amanhecer. O caos que vejo lá fora corta-me a respiração, sufoca-me o intimo ao mais leve roçar de pensamentos julgados perdidos, instantes que outrora se fizeram tão próximos que desejei esconder.

Abro as cortinas, deixo voar no céu da noite este alvoroço desmedido que se estende por toda a minha pele e passeia em busca dele por entre um olhar desesperado. Conheço muito bem Ricardo, outrora companheiro da minha melhor amiga e não fora o seu acidente trágico certamente estariam juntos neste momento. Sei que não perderia esta liberdade de sentimentos que povoam aquela cidade. A sirene irrompe a azáfama que já se sente. Estaríamos a ser mobilizados para uma retirada estratégica. Certamente numa questão de minutos toda a unidade BTS-4 estaria já fora do aquartelamento e a caminho de um local seguro. Teria de me apressar não fosse o caso de me deixarem por entre a confusão que se instalara.

Rapidamente pego na roupa amarrotada e perdida em cantos do quarto e visto-me tapando a pele que à pouco se sentia tocada de uma forma apaixonada e desejada. Deixo à mercê dos meus pensamentos o destino daquele Homem que me fizera Mulher, que me inundara de um fervor intenso inflamando a minha pele de beijos e segredos por onde o toque dos seus lábios havia traçado um trilho ao baú fechado até então das minhas emoções.

Dando uso a todos aqueles anos de treino militar saio do meu quarto carregando já todos os meus pertences. Sabia perfeitamente que em missões como aquele nunca se deveria desfazer a mochila. Nunca era propriamente uma visita pacífica a uma ilha mediterrânica. Corro desesperada por entre a praça, os olhos saltam de farda em farda tentando reconhecer o seu rosto que me encanta e se torna agora fruto da minha agonia. Com a mochila as costas entro no seu quarto... vazio... aquela ausência que se perde no silêncio daquele espaço sucumbe aos meus impulsos suspensos e leva-me os joelhos à gélida calçada de cimento como que esperando por um sinal teu que me traga de novo a esperança já perdida.

Sinto em mim, em mim Mulher que algo de errado terá acontecido. O tremor das explosões que sinto virem da cidade, o ruído das armas que não se fazem longe dali anunciam que todos estão já de alerta e que naturalmente estariam a preparar-se para o êxodo. Não era o caso deste que fizera alcova do meu quarto crescente. Algo de muito errado acontecera. Sinto-o como a expressão do meu rosto quando a força da saudade me eleva os olhos ao céu.

Corro em direcção ao ponto de controle de entrada e saída do aquartelamento, carinhosamente baptizado por ele como “checkpoint”, o local onde esperaria por mim se algo acontecesse, tal como me havia sussurrado enquanto me julgava a dormir. Em meu peito arde agora o fogo de uma estrela cadente ansiosa pelo reencontro. Não o fazia como encantador de promessas quebradas por isso estremecia provocando-me uma sã loucura na alma. Pelo caminho presenciava um triste alvoroço de viaturas que chegavam com camaradas da minha unidade severamente punidos por uma batalha que não era a nossa. É inacreditável saber-nos num território hostil, estranho, apenas com intenção de imparcialmente auxiliar aqueles que se cruzam inesperadamente por entre balas perdidas, rostos de uma miséria tão actual, e ainda assim fazem das nossas fardas alvos preferenciais do seu egoísmo selvático e depravado pela conquista de algo que nunca fora deles.

Não consigo mais conter a melodia que o meu impulso ansiava e num instante, ao ver-me sozinha apenas com o soldado que se escondia por detrás da guarita, sabia-o ausente das instalações, perdido com a sua insana paixão por um prefácio a preto e branco capturado na lente da sua camera.

Num rápido e mordaz instante sinto o impacto na minha face de um objecto pesado que me faz cair para cima do corpo do soldado cujo nome nem me tinha dado ao sentido de o conhecer. Atordoado, de mim transpiram pedaços de desespero, resquicios de loucura e delírio desejando que tudo aquilo se transforme num pesadelo que me fará acordar nos braços de Melinda. De olhos postos neste luar que me aconchega as lembranças, as únicas vozes que oiço são de ódio e os olhos que me abraçam desferem golpes covardes no meu corpo que não lhes confere qualquer risco ou perigo. Não sei se preferia agora aquele destino ou o soldado que me acompanhou nos seus derradeiros instantes de missionário militar.

Retiram-me do veículo deixando-o ao abandono, sem respeito algum seu habitante, despojando-o da sua farda e botas, como se de um mendigo se tratasse. Não consigo correr, muito menos caminhar, ainda combalido do acidente e dos golpes que me infligiram, levam-me de rastos como um animal até um camião que ali junto a estrada aguardava por aqueles guerrilheiros, de que guerra seriam eles, essa era uma história que certamente muitos gostariam de conhecer. Não seria inédito ver ovelhas tresmalhadas de um exército por si só desmembrado, transformado em mercenários que buscam na guerra apenas e só o seu proveito próprio. Desses sim tinha receio pois nenhuma regra ou respeito se aplicava a eles. Temia pela minha vida.

(Continua...)

domingo, março 02, 2008

XX - SEM FRONTEIRAS

Pelo caminho observava longas fileiras humanas de rostos chamuscados, dissidentes de uma cidade desmoronada. Nos seus rostos, o desespero, a tristeza que os carrega pela berma da estrada, vidas interrompidas por vozes que ecoam de armas carregadas de onde o diálogo não existe. São aquelas rugas que procuro na minha lente, o brilho fosco dos olhos de uma mãe que carrega o seu filho como um tesouro acabado de encontrar no emaranhado de uns escombros.

O som ensurdecedor das AK-47, a arma de eleição dos guerrilheiros fazia-se sentir cada vez mais próximo. A cidade ao longe era cada vez maior, a brisa quente que me atravessava o rosto anunciava-me um inferno acabado de acender, brasas junto a um rastilho de pólvora prestes a ceder à tentação de explodir.

No sentido inverso, veículos da ONU regressavam apressadamente para as instalações. Feridos, sim, via perfeitamente fardas ensanguentadas. Olhei para o rosto do Tenente que me conduzia até à cidade, medo, era esse o sentimento que lhe desenhava o contorno da sua face ao ver soldados do seu batalhão feridos. Começara a achar que tinha sido uma péssima ideia a de sair do aquartelamento assim sem protecção. Chegado com o nevoeiro frio do amanhecer, um zumbido forte se estende em todas as direcções dos meus sentidos. Estamos cada vez mais próximos do Inferno e receio ter-lhe aberto a porta e de mão dada, juntos numa lucidez perdida, ceder-lhe passagem para o quarto mais escuro da Lua.

Um estalido, fumo, um sabor a ferro que se apodera do meu paladar, chamas, o jipe que rola descontrolado pela estrada fora. Ainda sem saber o que acontecera, sinto-me a ferver, um incandescente caldeirão de sabores e sensações nada agradáveis... procuro a linha do horizonte por entre o fumo e o nevoeiro, agarro o volante e instintivamente o travão de mão do jipe. Algo acontecera, deixei passar os efeitos cromáticos das cores e tudo o que via agora era a preto e branco, como se eu próprio fosse artista principal de uma de muitas das minhas fotografias. Obstáculos de pedras, arvores, ventos e gritos começaram a se formar à minha frente. O jipe despistara-se por entre o mato de uma das bermas da estrada. Segundos depois, paralizado, mostra-me o que não mais era uma parede invisível. Um qualquer engenho explosivo acabara de cair ali atrás, bem ao centro da estrada que percorríamos, um instante único separara-me de um escurecer eterno. –“Meu Deus!”- as minhas mãos, a farda que trazia, coberta de um vermelho rubro, vivo, estaria ferido? O meu pensamento corria uma maratona sem fim, cega... mas não, nada além de uns arranhões, cortes superficiais. O meu motorista, o Tenente que me acompanhava, morto... ali ao meu lado o seu corpo fazia-se inerte, atravessado por peças metálicas que apenas poderia supor serem do próprio jipe tal era o estrago que este aparentava.

Tentava resistir ao brilho do olhar sobejamente conhecido daquele rosto de pele dourada, queimada, bronzeada pelo ardente vício de uma guerra sem pátria.

Silêncio...

Nada se movia, nem um som ou a brisa suave se fazia sentir como era esperado numa manhã de Primavera. As lágrimas, a revolta, a desorientação de um momento nunca pensado ou mesmo desejado. Abro a mochila e tremulante retiro a camera. Aquele jovem soldado morrera sem conhecer o triunfo das baionetas, não seria um herói condecorado por salvar o seu pelotão das mãos de um qualquer inimigo algures por esse território hostil. Não poderia deixar de lhe honrar a vitória de me deixar vivo, mantendo-se sereno ao volante e evitando que o despiste me levasse a um destino idêntico. Aponto a camera ao seu rosto, e como se um sorriso grave deixasse os seus lábios. Como que com magia e firmeza, os dedos que agora se fecham tristes, apertam a nota soprada de uma partitura incompleta que ali se compunha por palavras soadas a gritos e desespero.

O fumo do cigarro serpenteava por cima da sua cabeça inesperadamente descoberto por entre a bruma do amanhecer. Do silêncio que há instantes se fazia, agora, transformado em vozes intimidantes e de um idioma desconhecido para mim, levava-me a uma realidade surreal. Armas apontadas a mim, gestos rápidos e ameaçadores para que saísse do jipe. Não me imaginara prisioneiro de uma guerra que não era minha.

É de olhos fechados que estendo a mão e te procuro na quieta madrugada dos meus sonhos, desconhecendo os cheiros únicos da noite escondida entre as cortinas fechadas do meu quarto. A sós, vagueio com dedos pelos lençóis que à pouco se preenchiam com o teu corpo, sentidos despidos de mim e de essência descalça com que dei a ti por entre janelas abertas de paixão.

No fundo de mim encontro vestígios de ti, como tatuagens de mil cores que acendem o misterioso indigo do céu ainda escuro mas com clareiras venenosas de emoções contraditórias. Cheiros unidos e o sabor da tua boca leva-me a querer beber ainda mais da pureza da tua fonte por onde correm águas cristalinas de um rio desenhado nas linhas das tuas mãos.

Na maciez dos lençóis que se fizeram ninho para nós, como que erva orvalhada, amanheço o sentir do meu corpo e procuro-te de novo ao meu lado. Estendo a mão e não encontro o calor da tua. Serena como a aurora que acaria os seios que se fazem desejosos à saudade, sei que os sonhos são assim, quando abrimos os olhos, já lá não estão. Mas as marcas na pele, o sabor, os cheiros, a sensação que me inunda ainda as entranhas que me levam ao pomar do fruto proibido, dizem-me o contrário. Então porquê a ausência?

(Continua...)