sábado, março 22, 2008

XXVI - ARCO-ÍRIS

Chegada ao aquartelamento de Gorazde os blindados do batalhão estavam já ao longo da estrada junto às instalações em manobras de preparação para a sua saída em direcção à cidade de Sarajevo. Na praça, soldados feridos que haviam sido apanhados desprevenidos ora no fogo cruzado ou nas minas anti pessoal PMA-3, eram evacuados por helicóptero para Roma, em Itália. Salto do jipe como gazela ferida e corro em direcção à sala de briefing do Quartel General. Estavam já todos reunidos e a discutir os preparativos de auxílio à população que ali se encontrava encurralada. Ajuda havia já sido solicitada a Vitkovici e a Ustipraca onde se encontravam destacadas outras unidades em missão de paz.

Encostei-me na parede fria junto a porta, com mãos de veludo afasto os cabelos que caiem derrotados por entre o meu rosto entristecido. Oiço-os ao longe a debater o caminho a tomar, as unidades que seguem, e tudo aquilo parece-me um sonho do qual sei mais uma vez irei acordar.

“-Cabo, o que faz aqui?” – Aquelas palavras eram-me dirigidas de uma forma ríspida e certa como uma baioneta antiga que se cruza com o seu inimigo em pleno campo de batalha “-Comandante, temos duas baixas numa emboscada junto a cidade, uma das quais presumo ser o nosso fotógrafo de campanha que estará raptado.” – a rapidez com que explodi naquelas palavras deixou o comandante de campanha surpreendido comigo. O seu olhar cruzava-se com o meu cabisbaixo e derrotado pelo carrossel de emoções em que havia já se passeado. “-Cabo, recomponha-se, refresque-se e iremos em busca do nosso soldado perdido. Não deixamos ninguém para trás.” – a linha suave com que havia sido cozida aquelas palavras rebentara nos meus olhos, agora lacrimejantes, como carícias de saudade para ti, gotas que sulcam o vale do meu peito abrigado numa espécie de dor.

Retiro-me para os meus aposentos em passo acelerado “-Cabo! Saímos em trinta minutos e conto consigo!”. Parada no corredor, esboço um olhar por cima do ombro e aceno com a face por entre um sorriso rasgado por um agradecimento. Não sei o porquê deste pedido, mas julgo que o Comandante havia compreendido a importância desse tal soldado perdido. Era um homem sábio, sóbrio de pensamento e justo nos seus actos e palavras. Servia junto dele à já oito anos tendo cumprido seis missões similares a esta. Não queria pensar que havia de ser já transparente para ele, mas por agora, apenas Ricardo ocupava o meu pensamento.

Regressada ao meu quarto, dispo a roupa com a pressa de uma amante e deixo cair sobre mim a mão pesada da àgua quente nos meus ombros. O sabor do vapor que me envolve como braços longos que correm ao meu encontro por onde escorrem carícias e delícias a que chamo de beijos. Suspiro, choro, cai-me a alma num profundo lago de lágrimas que desabafa do meu peito. Caminho as mãos por entre os vales que fazem sombra e apraz o corpo em desejo, caminho as mãos pelas planícies e olho-me no reflexo, ali, em brilho de ansia, o destino desliza, já não há palavras que me embalem. A chuva quente que por mim escorre é tão apenas um sorriso cúmplice que de olhos fechados trocamos e selamos com um ultimo murmúrio em uníssono. É o silêncio das nossas bocas que detem a beleza de todas as palavras por dizer.

Sonhei um sonho desenhado na contracapa do céu, vi rascunhos e folhas soltas perdidas na leveza das nuvens que cobriram de fantasias o meu sorriso. Entreguei-me nua às tuas palavras, fiz Amor com elas, rebolei-me nas prosas inacabadas e fintei as horas em que a saudade me roubava o sabor da tua pele, nos momentos que descansavas ali junto de mim.

À mercê da brisa que levou o tempo do teu verbo, invento frases sem sentido, deito-me com adjectivos nocturnos nesta cama vazia de gramática amarrotada. Sei que contigo beijei metáforas que suspiraram docemente aprisionadas por entre os meus dedos enquanto me masturbavas em linhas e parágrafos de loucuras impensadas que voaram, desapareceram por aí, não me deixando sentir-lhes o aroma que me consola o espírito.

No peito ainda salta a emoção, o desejo de virar a página e ler uma outra passagem, talvez uma rima, um silêncio, um carinho, ou apenas o momento de te reencontrar e de novo te beijar.

Com a alma em alvoroço, aquieto em vão o desalinho que dança e rodopia no meu pensamento, enxaguo a água que escorre por mim e visto-me de cara lavada e corpo fresco para sair em busca deste sonho de insana paixão, o meu arco-íris que sei, sinto, ainda respirar...

(Continua...)

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