segunda-feira, março 10, 2008

XXIII - O MEU DESESPERO

Migalhas, pedaços, estilhaços de alguém que fui, limalhas de um tempo que se fez gotas de um mar que sou mas que em areia seca se tornou, e agora, que me refaço, agora que me reencontro por entre partículas desconhecidas, cada uma com história em livros de séculos vividos em capítulos de murmúrios que me fizeram por entre a noite, onde os ainda oiço ao meu ouvido, escorrega-me por entre os dedos, preso em duas mãos, um futuro que nasceu em mim qual afluente secreto nos subterrâneos da pele, corro... corro sem alma em sangue vivo de vida pingando por entre um emaranhado de pegadas perdidas em busca dessa tempestade que me apazigua a alma e me preenche o sentido.

Abro os olhos e adormeço os meus desejos... quero ir alienada, coerente na razão aguentando a tempestade que me atravessa o coração, à procura do que é certo. A estrada está cortada. Dois veículos da EUFOR barram a passagem. Pedem-me para regressar, a cidade está sitiada. Tento-lhes explicar a importância da minha viagem, algures naquela estrada faz-se à deriva quem eu procuro. Insisto que devo passar mas as ordens são específicas e ninguém deve passar “- Nunca deixamos alguém para trás, nunca abandonamos um soldado, nunca viramos as costas a quem de nós precisa e não vai ser hoje que irei fazer isso sejam as vossas ordens quais forem.” Gritei com as fagulhas da alma pendurada no céu e um brilho nos olhos que me denuncia o desespero. Nas vozes soltas que o silêncio guarda, olham-me como personagens que somos num palco cujo enredo se faz com forças desconhecidas “- Não deixaremos nunca ninguém, deixe o carro e entre no jipe. Iremos em busca de quem procura!”

Aquelas palavras com poderes de magia aquecem-me o ânimo e sossegam-me o desespero. Entro no jipe e comigo acompanham-me 3 soldados da EUFOR, todos armados. Arrancamos repentinamente como a poeira que se levanta por entre os trilhos que galgamos. “-A cidade está fechada. Hoje não é um bom dia para se andar por aí sozinho. Existem muitas brigadas da guerrilha e esses atacam qualquer um apenas para poderem usar como moeda de troca.” – dizia-me o soldado enquanto percorríamos a estrada.

Num momento indefinido, ali ao longe mas ainda assim tão perto, fora da estrada, um dos veículos do aquartelamento. Conseguia identificar-lo pelo emblema e o código de identificação pintado na carroçaria. Não queria acreditar o que os meus olhos viam, uma silhoeta desfocada no local o condutor, inerte. Fecho os olhos e invade-me uma sensação amarga na boca. Sob a alucinação de cinco luas de brilho, os meus olhos perdem-se na imensidão do céu. O jipe para, saiem os soldados em reconhecimento de quem eu sei que não quero que seja. O tempo pára. Tão subtil e frágil é o sonho que nos toca ao de leve pois ao acordar lento da manha seguinte, pode ele já não se fazer presente. O sorriso... o teu sorriso que me falou nos silêncios que me encantavam com as palavras que ousavas me escrever com os teus olhos. Como é bom saborear a cegueira que me entregas nas entranhas, vincada nos lençóis onde nos deitamos, abraçados ao calor ardente da nossa paixão. Não, não queria acreditar ter-te perdido, ali, sozinho. Ainda guardo o teu beijo comigo, ainda o sinto no céu da minha boca e por isso não podes ser tu aquele que ali se faz sem alma, não podes.

Retorna ao jipe um dos soldados em passo acelerado. Entra e enquanto alcança o rádio profere as palavras que não queria ouvir “-Está morto!”

O mundo fraqueja e num instante o principio faz-se de fim. Solto lágrimas que me ardem na pele e o meu corpo estremece ao lume que se ateou dentro de mim, a alma rende-se ao desespero, saio do jipe e corro a procura do que é certo.

Não.

Não preciso de te recordar, sinto-te comigo, habitas dentro de cada recanto de mim e não posso por isso te perder.

Corro... corro a procura do que é certo.

(Continua...)

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