domingo, março 02, 2008

XX - SEM FRONTEIRAS

Pelo caminho observava longas fileiras humanas de rostos chamuscados, dissidentes de uma cidade desmoronada. Nos seus rostos, o desespero, a tristeza que os carrega pela berma da estrada, vidas interrompidas por vozes que ecoam de armas carregadas de onde o diálogo não existe. São aquelas rugas que procuro na minha lente, o brilho fosco dos olhos de uma mãe que carrega o seu filho como um tesouro acabado de encontrar no emaranhado de uns escombros.

O som ensurdecedor das AK-47, a arma de eleição dos guerrilheiros fazia-se sentir cada vez mais próximo. A cidade ao longe era cada vez maior, a brisa quente que me atravessava o rosto anunciava-me um inferno acabado de acender, brasas junto a um rastilho de pólvora prestes a ceder à tentação de explodir.

No sentido inverso, veículos da ONU regressavam apressadamente para as instalações. Feridos, sim, via perfeitamente fardas ensanguentadas. Olhei para o rosto do Tenente que me conduzia até à cidade, medo, era esse o sentimento que lhe desenhava o contorno da sua face ao ver soldados do seu batalhão feridos. Começara a achar que tinha sido uma péssima ideia a de sair do aquartelamento assim sem protecção. Chegado com o nevoeiro frio do amanhecer, um zumbido forte se estende em todas as direcções dos meus sentidos. Estamos cada vez mais próximos do Inferno e receio ter-lhe aberto a porta e de mão dada, juntos numa lucidez perdida, ceder-lhe passagem para o quarto mais escuro da Lua.

Um estalido, fumo, um sabor a ferro que se apodera do meu paladar, chamas, o jipe que rola descontrolado pela estrada fora. Ainda sem saber o que acontecera, sinto-me a ferver, um incandescente caldeirão de sabores e sensações nada agradáveis... procuro a linha do horizonte por entre o fumo e o nevoeiro, agarro o volante e instintivamente o travão de mão do jipe. Algo acontecera, deixei passar os efeitos cromáticos das cores e tudo o que via agora era a preto e branco, como se eu próprio fosse artista principal de uma de muitas das minhas fotografias. Obstáculos de pedras, arvores, ventos e gritos começaram a se formar à minha frente. O jipe despistara-se por entre o mato de uma das bermas da estrada. Segundos depois, paralizado, mostra-me o que não mais era uma parede invisível. Um qualquer engenho explosivo acabara de cair ali atrás, bem ao centro da estrada que percorríamos, um instante único separara-me de um escurecer eterno. –“Meu Deus!”- as minhas mãos, a farda que trazia, coberta de um vermelho rubro, vivo, estaria ferido? O meu pensamento corria uma maratona sem fim, cega... mas não, nada além de uns arranhões, cortes superficiais. O meu motorista, o Tenente que me acompanhava, morto... ali ao meu lado o seu corpo fazia-se inerte, atravessado por peças metálicas que apenas poderia supor serem do próprio jipe tal era o estrago que este aparentava.

Tentava resistir ao brilho do olhar sobejamente conhecido daquele rosto de pele dourada, queimada, bronzeada pelo ardente vício de uma guerra sem pátria.

Silêncio...

Nada se movia, nem um som ou a brisa suave se fazia sentir como era esperado numa manhã de Primavera. As lágrimas, a revolta, a desorientação de um momento nunca pensado ou mesmo desejado. Abro a mochila e tremulante retiro a camera. Aquele jovem soldado morrera sem conhecer o triunfo das baionetas, não seria um herói condecorado por salvar o seu pelotão das mãos de um qualquer inimigo algures por esse território hostil. Não poderia deixar de lhe honrar a vitória de me deixar vivo, mantendo-se sereno ao volante e evitando que o despiste me levasse a um destino idêntico. Aponto a camera ao seu rosto, e como se um sorriso grave deixasse os seus lábios. Como que com magia e firmeza, os dedos que agora se fecham tristes, apertam a nota soprada de uma partitura incompleta que ali se compunha por palavras soadas a gritos e desespero.

O fumo do cigarro serpenteava por cima da sua cabeça inesperadamente descoberto por entre a bruma do amanhecer. Do silêncio que há instantes se fazia, agora, transformado em vozes intimidantes e de um idioma desconhecido para mim, levava-me a uma realidade surreal. Armas apontadas a mim, gestos rápidos e ameaçadores para que saísse do jipe. Não me imaginara prisioneiro de uma guerra que não era minha.

É de olhos fechados que estendo a mão e te procuro na quieta madrugada dos meus sonhos, desconhecendo os cheiros únicos da noite escondida entre as cortinas fechadas do meu quarto. A sós, vagueio com dedos pelos lençóis que à pouco se preenchiam com o teu corpo, sentidos despidos de mim e de essência descalça com que dei a ti por entre janelas abertas de paixão.

No fundo de mim encontro vestígios de ti, como tatuagens de mil cores que acendem o misterioso indigo do céu ainda escuro mas com clareiras venenosas de emoções contraditórias. Cheiros unidos e o sabor da tua boca leva-me a querer beber ainda mais da pureza da tua fonte por onde correm águas cristalinas de um rio desenhado nas linhas das tuas mãos.

Na maciez dos lençóis que se fizeram ninho para nós, como que erva orvalhada, amanheço o sentir do meu corpo e procuro-te de novo ao meu lado. Estendo a mão e não encontro o calor da tua. Serena como a aurora que acaria os seios que se fazem desejosos à saudade, sei que os sonhos são assim, quando abrimos os olhos, já lá não estão. Mas as marcas na pele, o sabor, os cheiros, a sensação que me inunda ainda as entranhas que me levam ao pomar do fruto proibido, dizem-me o contrário. Então porquê a ausência?

(Continua...)

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