Há dias assim, em que correndo passeio fora nos apercebemos da velocidade rara e dimensão inventada das nossas vidas. Olho para o lado e tudo gira a uma velocidade infernal, abstenho-me de pensar. Para piorar a sensação era o meu aniversário e por isso esperava já o impulso da alma que me fechava a porta a um velho ano. Pela primeira vez iria comemorar sozinho, sem amante ou confidente, o melhor amigo em viagem novamente. “Que espaço é este onde me mantenho fechado em troca da minha liberdade?”, pensava eu enquanto abria as portas da galeria.
Novamente o ritual, a forma encontrada pelo meu ser em apreciar e descobrir algo de novo nos quadros expostos, nos momentos únicos capturados através de uma lente, as faces ruborizadas a preto e branco onde na dúvida se evidenciam ao olhar de um fotografo indiscreto. Gosto particularmente do trabalho do Ricardo. Sempre que revejo as suas fotografias, oiço, vejo, sinto, mas não estou lá, choca propositadamente com o tradicional, contorna o arrojado indiferente como a chuva que nos molha e ensopa a alma. Não é muito apreciado porque nem todos sabem-lhe reconhecer os afectos que o preenchem e a crepitação da alma que devora tudo aquilo que sente até ao limite. É um explorador nato dos sentimentos alheios.
Não recebia notícias dele desde que se havia ausentado à alguns dias e curiosamente no dia em que partiu havia recebido um telefonema mesmo antes de fechar a galeria, solicitando para reservar o seu trabalho que estaria exposto, principalmente uma foto, um auto retrato. Estava nessa altura no seu auge emocional, a carreira deslizava como uma faca por entre manteiga derretida, havia encontrado uma mulher com quem partilhar os seus dias, e como tal, decidiu revelar um pouco a máscara por detrás da lente da sua Canon. O estranho ainda no entanto era alguém querer comprar o seu trabalho, como tinha já tido a oportunidade de lhe referir. Voltei para a o meu canto da sala, o brilho do dia iluminava já a entrada, os raios de sol formavam um curioso arco vindo das grades superiores da fachada dando um ar um pouco imperial ao espaço.
A porta abre-se e de lá surge um vulto feminino, proeminente nas suas formas majestosas e possessivas de olhares alheios. Trajava um longo vestido preto com frinjas verticais branqueadas, uma autêntica fotografia de cartaz. Os passos eram dados com convicção, cabelos longos, bem abaixo dos ombros e doirados, chapéu branco de abas largas e uma pequena mala debaixo do seu braço direito. Aquele figura parecia ser uma personagem de hollywood, uma celebridade. Aproximou-se e perguntou pelo director da galeria – “Fala com ele mesmo, João de Bettencourt ao seu dispor!” – exclamei eu numa pose tradicional e com textos pensados ao pormenor. Alguém que dedicara o seu tempo de manha a se preparar daquela forma, era sem dúvida merecedora de palavras cuidadas e atenciosas.
- “Muito prazer, conforme falamos telefonicamente, venho resgatar o trabalho fotográfico de Ricardo Torres e estou preparada para ser generosa na sua aquisição”.
Não sabia se havia de ficar perplexo com aquelas palavras ou a evidente frontalidade daquela mulher que ali estava à minha frente. Pela forma como aquele discurso fluiu, é certamente alguém que está habituada a conseguir o que pretende. Assim sendo optei por a levar para junto do espaço onde as fotografias do Ricardo estavam expostas, necessitava de explorar um pouco mais sobre quem esta mulher seria e o porquê do seu interesse naquele trabalho. A minha curiosidade era maior que o acto comercial em si.
(Continua...)
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