A doçura do teu ser entranhado em mim profundamente na minha pele como um perfume raro e divino quebrou todas as forças que em mim ainda restavam. Caí em câmara lenta nesse momento gritante de sensações que o silêncio não guarda, dos meus olhos emanavam pequenos grãos de luz que confluem numa ténue espiral de brilhos. Fechei os olhos. A pedra calcária que se fazia crescer a cada dia em mim começava a estilhaçar. Cada palavra, cada letra, cada linha, leves carícias que agora de joelhos, olhando minhas próprias mãos, sentia o enlace do fio condutor que me levava ao passado, ao teu dia em que me foste roubada, ali, em mim deitada, de olhos abertos a suplicar-me pela eternidade que nos une ainda mais um ao outro.
Por instantes a realidade mistura-se com o passado inatingível que preferia alterar, moldar em barro com as minhas mãos a tua silhueta que muito desejava ser a que me deixara tais palavras.
Preferi sentar-me e fechar os olhos.
“-Dizes que me amas, que me queres, que me desejas, mas não me ouves, pareces não ouvir a minha voz, queres calar-me com beijos que não quero dar, os teus braços envolvem-me e eu quase fujo, quero que me oiças, quero dizer-te que te amo, que estou contigo para além do que vês, não me entendes?”
Recordava cada instante daquelas palavras com que havia chicoteado Raquel naquela manhã. Estava preparado para rumar a uma nova aventura, agora definitiva, mais pacífica e tranquila e oferecer-lhe tudo o que havia a oferecer. Não aguentava mais os momentos sôfregos da incerteza de a deixar de ver após um simples beijo matinal a cada dia que saía em missão. Discutimos nesse dia e nunca me havia perdoado por o ter feito.
-“Não acreditamos no mesmo amor? Não o sentimos da mesma forma? Vais para onde não quero ir, para onde a minha alma chora e tu não vês, são lágrimas que não molham o chão que pisas, lágrimas cortantes que matam lentamente a cada instante que não sei de ti, dia após dia, mas tu não as vês. Chama-me egoísta por te querer a são e salvo, prefiro-me assim a insensível!”
Sabia que aquelas palavras lhe feriam o coração. Sua paixão pelas causas humanitárias levara-a a cometer inúmeros sacrifícios pessoais, a ausência da família, os dias constantes de isolamento, os perigos das balas que zumbiam por entre as paredes que se faziam em ruínas num país também ele arruinado. Mas sentia que após vários anos naquele cativeiro, havia chegado a hora de também ela ser causa humanitária e usufruir de um abraço quente, de voltar a nascer longe daquele mundo que a mecanizara, derreter-se por entre o desejo quando a tocava.
Viajávamos em veículos separados, sem uma mais palavra trocada após aquela discussão. Partíamos em direcção ao contingente principal da ONU para regresso quando a poucos metros à frente, o tempo congelou numa nuvem de fumo negra que envolvia o seu jipe. Meu mundo morrera naquele instante.
Estas palavras, as cartas que me traziam palavras de esperança, de sentimentos escondidos, eram cruéis para mim e ao mesmo tempo, uma doce lembrança de um sorriso numa sangrenta batalha interior, onde a bandeira branca não será hasteada, mesmo que morrendo um pedacinho a cada dia, até ao momento que dos meus lábios bebas de novo do cálice do meu Amor.
De novo entrei no estúdio. Fechei a portada antiga (definitivamente teria de encontrar um novo espaço sem o bolor do tempo), e abri caminho por entre os negativos e cartas diversas espalhadas pelo chão como se ali estivessem perdidas no tempo “-nota mental” disse a mim mesmo, “-arranjar quem me limpe a bagunça”. Eram horas de trabalho que ali se faziam esperar. Não podia me deixar levar pelas cartas que me haviam deixado ou de novo vaguearia no tempo e perderia horas que necessitava imenso para terminar aquele trabalho.
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