quinta-feira, janeiro 17, 2008

XII - TENTAÇÃO

Eram quase praticamente seis hora da manhã, hora local, quando aterramos nas imediações de Sarajevo. Foi-nos indicado que não aterraríamos mesmo na cidade por questões de segurança – “Deixa as malas que serão entregues no quartel de campanha e vem comigo!” – disse-me Melinda assim que saímos do nosso transporte aéreo. Dirigimo-nos para um automóvel da marca Skoda, verde garrafa, com evidências de choques, e uns buracos numa das portas que me pareciam ser de balas. Achei melhor me manter silenciado e atento durante a viagem. A estrada alternava entre terra, gravilha e alcatrão. Desnecessário dizer o quão miserável o estado das mesmas.

Chegamos ao destacamento local vinte minutos depois de aterrarmos. Conseguia reconhecer só pelo som o cenário que nos esperava. O estalido metálico do som que milésimas depois se desvenda aos nossos olhos numa nuvem de destroços emaranhados num vermelho ensanguentado. Era certamente um local dantesco, edifícios destruídos e em ruínas partilhavam o seu espaço junto a estátuas ainda edificadas em granito escuro.

Entramos muito apressados num perímetro já guardado por elementos da ONU que visivelmente se encontravam em estado de alerta máximo “Parece-me que chegamos em má altura.” Dizia eu a Melinda enquanto espreitava com extrema curiosidade pela janela do veículo que corria qual atleta olímpico por entre as ruas estreitas à entrada da cidade. Já dentro do aquartelamento onde iríamos certamente fica, o ambiente contrastava com o que se ouvia no seu exterior e de onde os odores nos invadiam constantemente com sensações desagradáveis.

- Hoje poderemos descansar. Não iremos sair em missão alguma. Podes te ambientar um pouco ao local e suas gentes mais tarde quando anoitecer, mais seguro garanto-te. - disse-me Melinda assim que saímos do carro. Foi-me indicado onde ficaria alojado e decidi de imediato fazer o reconhecimento do local. Cama com lençóis brancos e duas almofadas, uma cadeira e secretária de madeira velha, uma janela em forma rectangular na vertical dividida em quatro, bem ao estilo militar e uma casa de banho com os requisitos básicos. Já havia pernoitado em lugares bem piores do que aquele por isso considerava que até me servia perfeitamente. Entretanto já junto de mim na porta de entrada estava a minha mala.

Iria sem dúvida aproveitar para descansar das horas de viagem num voo longo e turbulento. Decidi começar a desempacotar tudo o que havia trazido comigo. Roupa para as gavetas, camera e filmes para a secretária, o mini estúdio de revelação pousado no chão e o envelope… um envelope pousado sagradamente junto à minha roupa interior, sem nome, impune à destreza de ter ali sido depositado, violado apenas pela tinta de uma caneta de visível traço fino que compunha o endereço do seu destino… “Ricardo”.

Abri o envelope com receio… vagarosamente como se de um ritual se tratasse.

“Já não me conheces, cresci, dei voltas ao mundo, de mágoas cheias ás costas, e tu, não sentiste a minha falta, bati com a porta, e tu, correste a fechá-la à chave, chamei o teu nome do fundo de um poço que me ajudaste a fazer, e tu, não me ouviste, escrevi-te cartas na alma, e tu, rasgaste as folhas em branco que encontraste, pousei para descansar nos teus ramos, e tu, derrubaste a árvore, cresci, e tu, já não me conheces, fui cobaia numa magia de Amor que tomei em doses reforçadas e ganhei pernas e asas para partir, e voltar para junto de ti, mas tu não sabes, não vês que cresci por dentro, onde os teus olhos não chegam.

Respiro-te, sinto o teu cheiro em mim, relembro os momentos loucos que vivemos num paraíso longe daqui, relembro cada palavra que ecoa suavemente na minha alma, suspiro a cada movimento lembrado, sonho contigo de olhos abertos enquanto o mundo dorme, fecho os olhos a cada lembrança, para me sentir mais perto de ti, absorvo cada partícula de sonho que de mim emana, não esqueço a magia do olhar, derramo os instantes dos nossos momentos para uma pequena caixinha de seda feita, que guardo na intimidade, dentro de mim, onde ainda te sinto.”

Senti-me assustado. Não esperaria que ali, no seio de uma guerra que se faz pela eternidade, tais palavras e emoções existissem e me fossem dirigidas. Embrulhei a seda que se fazia escrita naquele papel na minha mão e saí a correr à procura de Melinda. “-Naquele edifício, a porta dos aposentos do Cabo Melinda é a que se encontra à direita.” Disse-me um soldado que nos tinha acompanhado na viagem. Entrei mesmo sem me apresentar ou pedir a permissão de entrada e ali mesmo, de frente para mim, um corpo desnudado, firme e moldado, os seios rosados e redondos e pela atmosfera fria que se sentia, rijos. Ficamos os dois a olhar um para o outro sem uma palavra ser dita. O espanto era tal que todo o meu corpo congelou, de tal forma que a carta havia já caído da minha mão e estendia-se agora no chão de cimento que se escondia por entre uma carpete azul clara. Não sabia se havia de virar costas e sair, se pedir desculpas e manter-me quieto ou se pedir por um milagre e uma bomba caísse ali mesmo aos meus pés.

(Continua...)

Sem comentários: