quinta-feira, janeiro 31, 2008

XV - MOMENTOS AGRADÁVEIS

Sentamo-nos num dos cantos da sala. O ambiente acolhedor e a meia luz convidada à intimidade. A sala decorada com alguns objectos claramente antigos e de referências ao pastoreio, evidenciavam anos passados, estagnados numa realidade que deixara de existir mas sem qualquer evolução.

- Surpreendido, pelo que vejo nos teus olhos, estou certa?

- Sim posso-te afirmar isso mesmo. Não esperava que num local como este, no seio de um conflito como o que decorre lá fora, possa existir este espaço que embora rudimentar, não deveria supostamente existir, pelo menos é essa a ideia de quem se encontra ausente desta realidade.

Sorriu dando-me a entender que esperava aquela mesma reacção da minha parte. Sentia-me um perfeito turista ignorante não fosse os ruídos esporádicos que lá fora se faziam ouvir relembrando-me que não estava de férias. Mas decido em me abster por momentos e aproveitar aqueles instantes, não sabendo quando os poderia voltar a reviver. Afinal esse fora um dos motivos que me trouxera até aquele local, reviver.

Melinda entusiasmada foi pedindo de uma ementa feita num rectângulo de madeira plana tendo uma folha agrafada com a descrição das possíveis refeições. Deixei que pedisse por mim confiando nela o meu possível paladar surpreendendo-me de seguida ao pedir uma garrafa de vinho tinto, soube-o assim que a mesma chegou até nós nas mãos de um garoto todo amarrotado, de cabelos castanhos e uns olhos do tamanho do mundo. Não teria mais do que 5 a 6 anos e estava já ali a ajudar os seus pais certamente.

Chianti era o vinho escolhido. É um vinho tinto italiano produzido na região da Toscana. Com toda a certeza a sua presença ali era fruto da contrafacção, usual em momentos e locais como aquele. É um vinho tinto seco com aromas de fruta muito concentrada e é produzido com as uvas Sangiovese. O Chianti combina bem com comidas leves e os seus sabores e aromas de violeta e cereja são impressionantes. Mais impressionante fiquei com esta escolha, não só porque adoro particularmente este vinho mas porque tinha sido escolhido por Melinda.

O serão prolongou-se. A conversa mantinha-se a um nível um tanto formal, roçando por vezes alguns pormenores íntimos mas nada reveladores do que fosse. A particularidade da forma em como se exprimia e falava demonstrava-me que confiava na minha pessoa.

Fiz uma pausa e pousei o fotografo, deixei-o aberto à mercê da brisa que sopra da voz que do outro lado da mesa me chama e em certa medida me encanta.

Fascinado, sigo o meu querer, não me impeço de correr sob a cor azul do céu dos meus sonhos e poiso no conforto das frases abertas que me enlaçam.

Sem dúvida que me desperta anseios, os sorrisos fluíam em carícias ardentes que as mãos selavam em toques escondidos, movidas pela sintonia mágica que flúi para além de nós. Nem sei bem o que comia. O desejo que escorre dos meus lábios húmidos dá-me a provar o sabor doce e quente de algo à muito esquecido.

Incendeio fantasias no fogo da minha língua e solto um Sol imenso que me derrete os sentidos e me inflama deliciosamente a pele. Sabia-me a percorrer estradas perigosas rumo a um destino incerto. Num olhar nos olhos meus, senti que entreabria sensações profundas que encontro apenas quando inebriado pela lente da minha câmara, enfeitiçava-me aquele momento e sentia que Melinda absorvia por completo a minha alma para dentro da dela.

Terminamos o jantar e ao olhar em nosso redor as mesas faziam-se vazias. Tínhamos perdido a noção da realidade, do tempo que se estendia à nossa frente e ditava as suas vinte e três horas. Era noite já e tínhamos passado das brincadeiras de criança que nos fizeram esmurrar joelhos ao primeiro beijo na primária. Foi bastante agradável a leveza do tom relaxante partilhado ali.

- Saímos e continuamos a nossa conversa lá fora? – questionava-me por entre um olhar já claramente a evidenciar um entusiasmo Chianttiano. Estranhei apenas que se não estaria ambientada ao seu efeito, o porquê de o ter especificamente seleccionado. A frescura da noite fazia-se já sentir. Recordava-me a noite Londrina com o seu nevoeiro característico.

Amontoam-se palavras soltas no espaço infinito, pairo na dormência da inspiração. Lanço ao ar os dados deste jogo que me impus e espero que as suas pintas me ditem devaneios ao ouvido. Assim o desejava.

Contemplo a Lua estranhamente calada e no brilho das estrelas que riscam o céu procuro uma centelha de imaginação. Sentia que vasculhávamos na nostalgia da noite escura uma ideia mais audaz, que nos permitisse soltar os desejos e entregar nos nossos passos, os momentos que fervilham no quarto escondido das nossas loucuras.

Atraso o relógio, acrescento dias que não existem ao calendário das minhas fantasias, e sento-me, na indecisão de permitir que o tempo se faça de um instante longo e que dure mais que apenas um momento.

Sem a bússola que me orienta o discernimento, enleiam-se o passado, o presente e o futuro, entrelaçam-se nas minhas mãos perdidas e sem norte, os dedos paralisam na apatia deste momento devoluto de sonhos.

Sinto-me ausente de mim..

quinta-feira, janeiro 24, 2008

XIV - CONTRASTES

Nada naquele momento fazia já sentido, talvez pela obtusa realidade com que me tinha deparado em um espaço e num tempo afastado das cartas abandonadas que até mim chegaram. Estava visivelmente intrigado com esta carta que me deixaram mas ainda mais chocado com o embaraço com que me coloquei, embora não podia deixar de ter notado no corpo visivelmente moldado e polido de Melinda – “Estás aqui para fotografar e não para outras coisas ouviste?” – impunha-me numa afirmação que questionava a minha integridade emocional. Necessitava de me manter focado para o objectivo em mãos e deixar de fora qualquer situação que o possa por em causa.

De regresso ao meu quarto deitei-me por um pouco. Não sabia se era já o cansaço da viagem ou toda aquela comoção mas necessitava de fechar os olhos mesmo que por breves instantes. Acertei o relogio para as dezanove horas de forma a que despertasse a essa hora. Um duche rápido iria me oferecer outro ânimo, e assim, me deitei aconchegado com uma manta e deixei-me levar pelo cansaço que me fechava os olhos lentamente.

Repousava neste mundo diferente, sonhos perdidos como um puzzle davam luz às imagens e cores que me aconchegam neste instante em que adormecido, recomponho-me – “Ricardo… abre os olhos, acorda!” – aquelas palavras chegavam-me de tão perto, como se o universo me tocasse e o céu se fizesse terra.

– Ricardo, estás bem? Acorda! – e de repente da escuridão se fez luz e aquele rosto ali junto a mim confundia-se ainda com a névoa feita na minha mente.

- Melinda, que horas são? – questionei dando um autêntico pulo da cama, qual canguru amestrado que face à sua recompensa cumpre rigorosamente as suas acrobacias.

– Neste momento já devem passar uns dez minutos das vinte horas. Como não estavas lá fora e não respondias às batidas na porta decidi entrar.

- O cansaço, à algum tempo que estas longas viagens encontram-se fora do meu itenerário – desculpava-me do atraso tentando perceber porque o meu relógio não havia despertado.

- Pensei que estivesses ainda deitado a descansar realmente porque vi em ti um cansaço pesado que realmente merece o seu descanso. Adiamos o jantar para amanhã e assim descansas, parece-te bem?

- As minhas promessas cumprem-se, por isso hoje vamos jantar sim – afirmei como um perfeito capitão que se afirma perante o seu pelotão querendo ganhar o respeito dos infames e prevaricadores.

- Optimo! Dez minutos devem chegar para te recompores, assim sendo, estarei lá fora junto ao parque de viaturas num dos jipes a aguardar por ti. – e dizendo estas palavras sai da mesma forma silenciosa com que entrou.

Assim sendo mudei de camisa e refresquei-me o melhor que pude naquela fracção de tempo, e mesmo antes do prazo que me fora dado terminasse, estava já a sair dos aposentos em direcção ao veículo que nos levaria ao restaurante. Entrei para o lugar de passageiro já que ela mesma ocupava a função de condutor. Confesso que nunca fora conduzido, e a reacção intrigava-me. Saímos sem que uma só palavra fosse abordada. Durante o percurso admirava uma cidade destruida pelas palavras soltas de vozes que gritam algo que um povo inteiro não deseja, assistia esse desespero por entre as faces quebradas de viajantes exilados que junto à estrada caminhavam em direcção a um sol nascente sem nada mais, do que a própria esperança, e enquanto isso eu mesmo ia naquele instante a caminho de um certo restaurante que desconhia e me questionava como ainda existia. No mínimo a ironia tornava tudo aquilo ainda um pouco mais interessante.

- Chegamos – e dito isto Melinda aponta para um casa de dois pisos, com luzes acesas no rés do chão, as paredes de pedra estavam ainda bem compostas e não me apercebia de qualquer marca ou passagem de todo um conflito que ali tão perto se fazia. Entramos mesmo sem bater como se de um banalíssimo restaurante se tratasse. O meu espanto não tardou. Mesas redondas compostas com uma toalha avermelhada e umas listas brancas, duas velas acesas por cada mesa, pratos de barro tipicamente de épocas antigas e senhoriais e uma senhora que aparentava já uma certa idade atarefada de mesa em mesa a servir o que pelo característico odor me sabia a cabrito assado.

- Não acreditaste que te traria de facto a um restaurante?

- Nunca imaginaria este cenário sereno e idílico enquanto lá fora decorre uma guerra. Isto é como se ao entrar por aquela porta acabássemos de abrir as portas a um sonho.

Desconhecia o idioma local. De facto apenas o inglês e o francês eram os idiomas que dominava e assim, logo que a aquela personagem feminina que por ali servia se aproximou e nos atirou vocábulos que desconhecia, optei por deixar Melinda tomar conta da situação. Algo me dizia que aquele jantar seria por si só já um extra face a toda aquela surpresa que não exitei em captar em alguns cliques na minha câmera que me acompanha sempre.

(Continua...)

sexta-feira, janeiro 18, 2008

XIII - EMBARAÇO

- Perdoa-me! – exclamei visivelmente incomodado e sem saber muito bem o que fazer. Virei costas e mantive-me ali porque uma explicação deveria ser dada a Melinda – Perdoa-me mais uma vez, deveria ter batido e pedido permissão para entrar. – O silêncio que ali se fazia cortava-me a alma tão fina era a faca que se fazia presente na minha mente, a qual certamente usaria para me apunhalar por tal intrusão.

- Ricardo, podes te virar. Já estou composta! – disse-me Melinda no seu tom de voz calmo mas visivelmente trémulo pelo choque de tal intrusão suicida. Ainda incrédulo com o meu acto baixei-me e voltei a segurar o fruto do meu desvario e como pedido voltei-me de novo. Segurava já um casaco militar que iria vestir sobre uma camisa branca que havia já vestido, calças e sapatos, nem eu me vestia tão rápido quanto ela.

- Gostaria apenas que me ajudasses a descobrir quem poderá ter mexido na minha mala e lá colocado esta carta?!! – perguntei-lhe com o olhar semi-fechado qual pecador diante do seu pecado e segurando a carta por entre os dedos da minha mão direita.

- Dirige-te ao Posto de Informações e questiona quem fez o transporte de toda a nossa logística desde o aeroporto até aqui e certamente terás a tua resposta.

O tom impregnado naquelas palavras deixaram-me curioso porque evidenciavam uma subtil raiva mas no seu contraste um sorriso latente.

- Foi apenas para isso que aqui vieste e entraste desse modo nos meus aposentos? - esta era a questão que queria evitar a todo o custo. Era agora que certamente me iria levar a Conselho Militar e expulsavam-me daquela missão.

- Melinda, a minha reacção a esta carta não justifica a intrusão mas acredita que não pretendia que isto tivesse acontecido e peço-te que me perdoes.

- Jantas comigo, não na messe dos oficiais mas fora daqui. Falaram-me de um típico restaurante ainda a funcionar fora dos limites da cidade. Talvez assim esqueça este episódio.

Honestamente não sabia o que responder. O embaraço era tão evidenciado que inclusive havia já esquecido o motivo que me levara a cometer tal infracção. Acedi com a cabeça num acto pecaminosamente redentor. Voltei costas e dirigi-me para a saída – Encontramo-nos no ponto de reunião militar pelas vinte horas? – perguntou-me estava eu já com a mão na porta para sair.

- Sim, perfeito. Vinte horas para mim é perfeito. – e atirando estas palavras por cima do meu ombro saí apressadamente. A brisa que me afagava o rosto era um refresco para a alma. Sentia um embaraço de pernas, um breve tremor de artérias, uma confusão na boca, uma batalha de veias. Continuei a caminhar em direcção aos meus aposentos. Decidi esclarecer as palavras que ali tinha escritas na palma da mão numa altura em que tudo o que saísse do pensamento fosse racional.

(Continua...)

quinta-feira, janeiro 17, 2008

XII - TENTAÇÃO

Eram quase praticamente seis hora da manhã, hora local, quando aterramos nas imediações de Sarajevo. Foi-nos indicado que não aterraríamos mesmo na cidade por questões de segurança – “Deixa as malas que serão entregues no quartel de campanha e vem comigo!” – disse-me Melinda assim que saímos do nosso transporte aéreo. Dirigimo-nos para um automóvel da marca Skoda, verde garrafa, com evidências de choques, e uns buracos numa das portas que me pareciam ser de balas. Achei melhor me manter silenciado e atento durante a viagem. A estrada alternava entre terra, gravilha e alcatrão. Desnecessário dizer o quão miserável o estado das mesmas.

Chegamos ao destacamento local vinte minutos depois de aterrarmos. Conseguia reconhecer só pelo som o cenário que nos esperava. O estalido metálico do som que milésimas depois se desvenda aos nossos olhos numa nuvem de destroços emaranhados num vermelho ensanguentado. Era certamente um local dantesco, edifícios destruídos e em ruínas partilhavam o seu espaço junto a estátuas ainda edificadas em granito escuro.

Entramos muito apressados num perímetro já guardado por elementos da ONU que visivelmente se encontravam em estado de alerta máximo “Parece-me que chegamos em má altura.” Dizia eu a Melinda enquanto espreitava com extrema curiosidade pela janela do veículo que corria qual atleta olímpico por entre as ruas estreitas à entrada da cidade. Já dentro do aquartelamento onde iríamos certamente fica, o ambiente contrastava com o que se ouvia no seu exterior e de onde os odores nos invadiam constantemente com sensações desagradáveis.

- Hoje poderemos descansar. Não iremos sair em missão alguma. Podes te ambientar um pouco ao local e suas gentes mais tarde quando anoitecer, mais seguro garanto-te. - disse-me Melinda assim que saímos do carro. Foi-me indicado onde ficaria alojado e decidi de imediato fazer o reconhecimento do local. Cama com lençóis brancos e duas almofadas, uma cadeira e secretária de madeira velha, uma janela em forma rectangular na vertical dividida em quatro, bem ao estilo militar e uma casa de banho com os requisitos básicos. Já havia pernoitado em lugares bem piores do que aquele por isso considerava que até me servia perfeitamente. Entretanto já junto de mim na porta de entrada estava a minha mala.

Iria sem dúvida aproveitar para descansar das horas de viagem num voo longo e turbulento. Decidi começar a desempacotar tudo o que havia trazido comigo. Roupa para as gavetas, camera e filmes para a secretária, o mini estúdio de revelação pousado no chão e o envelope… um envelope pousado sagradamente junto à minha roupa interior, sem nome, impune à destreza de ter ali sido depositado, violado apenas pela tinta de uma caneta de visível traço fino que compunha o endereço do seu destino… “Ricardo”.

Abri o envelope com receio… vagarosamente como se de um ritual se tratasse.

“Já não me conheces, cresci, dei voltas ao mundo, de mágoas cheias ás costas, e tu, não sentiste a minha falta, bati com a porta, e tu, correste a fechá-la à chave, chamei o teu nome do fundo de um poço que me ajudaste a fazer, e tu, não me ouviste, escrevi-te cartas na alma, e tu, rasgaste as folhas em branco que encontraste, pousei para descansar nos teus ramos, e tu, derrubaste a árvore, cresci, e tu, já não me conheces, fui cobaia numa magia de Amor que tomei em doses reforçadas e ganhei pernas e asas para partir, e voltar para junto de ti, mas tu não sabes, não vês que cresci por dentro, onde os teus olhos não chegam.

Respiro-te, sinto o teu cheiro em mim, relembro os momentos loucos que vivemos num paraíso longe daqui, relembro cada palavra que ecoa suavemente na minha alma, suspiro a cada movimento lembrado, sonho contigo de olhos abertos enquanto o mundo dorme, fecho os olhos a cada lembrança, para me sentir mais perto de ti, absorvo cada partícula de sonho que de mim emana, não esqueço a magia do olhar, derramo os instantes dos nossos momentos para uma pequena caixinha de seda feita, que guardo na intimidade, dentro de mim, onde ainda te sinto.”

Senti-me assustado. Não esperaria que ali, no seio de uma guerra que se faz pela eternidade, tais palavras e emoções existissem e me fossem dirigidas. Embrulhei a seda que se fazia escrita naquele papel na minha mão e saí a correr à procura de Melinda. “-Naquele edifício, a porta dos aposentos do Cabo Melinda é a que se encontra à direita.” Disse-me um soldado que nos tinha acompanhado na viagem. Entrei mesmo sem me apresentar ou pedir a permissão de entrada e ali mesmo, de frente para mim, um corpo desnudado, firme e moldado, os seios rosados e redondos e pela atmosfera fria que se sentia, rijos. Ficamos os dois a olhar um para o outro sem uma palavra ser dita. O espanto era tal que todo o meu corpo congelou, de tal forma que a carta havia já caído da minha mão e estendia-se agora no chão de cimento que se escondia por entre uma carpete azul clara. Não sabia se havia de virar costas e sair, se pedir desculpas e manter-me quieto ou se pedir por um milagre e uma bomba caísse ali mesmo aos meus pés.

(Continua...)

segunda-feira, janeiro 14, 2008

XI - A VIAGEM

A tarde fazia-se já longa. Sabia já por entre conversas com Melinda que fazia juz ao significado grego do seu nome “Mulher cortês e gentil”, que estaríamos de saída para a Jugoslávia numa missão de paz de 30 dias. Julgava-me preparado para tudo ou pensava eu que estaria, mas distintamente o ressoar do destino que me esperava por entre a minha pele trouxe-me arrepios e interrogações com medo da resposta. Algo de bom me trazia aquele mal estar perene em todo o meu corpo, não iria necessitar de cafeína para me manter acordado nas longas horas de viagem até Saraievo ou Sarajevo como lhe quisermos chamar.

Todos já ouvimos falar das praias da costa adriática da Jugoslávia, do destemido General Tito da Jugoslávia, dos comunista não-alinhados, da guerra na Bósnia lá para aquelas bandas distantes onde a Europa se perde para o Leste e daquele sérvio que resolveu assassinar o arquiduque austro-húngaro em Sarajevo causando muitos problemas à Europa dos impérios ou ainda dos ambientes apocalípticos kusturikianos, mas, ainda hoje, pouco sabemos desta Europa tão díspar. Aquela zona despedaçada, a da ex-Jugoslávia é um autêntico mosaico amalgamado de culturas fabulosas. Mesmo a Grécia que nos legou parte do que hoje somos, é uma tão grande desconhecida. Quando se fala naquele oriente, pensa-se invariavelmente — quer com o devido conhecimento, quer sem ele — num caos, numa zona ignota, ligeiramente oriental, a Europa de Leste, a remota Europa eslava.

Já no avião e acomodados juntamente com a carga operacional da Unidade BTS-4 assim designada, via-me por entre um emaranhado de rostos envoltos numa textura de tristeza e saudade dos que haviam já deixado em terra. Não duvido da capacidade destes nobres soldados que se aventuram a uma desconhecida mira de uma qualquer arma de fogo.

Melinda continuava a acompanhar-me durante a viagem. Havia já notado nela o desejo de se encontrar presente para mim, deixar-me conhecedor de todos os pormenores da missão e o que era pretendido de mim. Não era leigo algum na matéria e sabia que apesar do tom e pormenores com que se deleitava a entregar-mos, julgando talvez que nunca teria estado num terreno tão difícil como este, deixei-a continuar. O tom suave e alegre da sua voz aliviava-me o stress de voar. - “Quando aterrarmos teremos tempo para nos acomodar e socializarmos um pouco?” – interrompi eu o seu discurso contínuo e acenou-me com um sim misturado por entre um sorriso.

Foi então que decidi fechar os olhos e aproveitar as horas de viagem que se avizinhavam. Dirigi-me à mochila que me acompanhava com material ligeiro para me apoiar como almofado e reparei que estava a ser observado por Melinda. Ignorei, repousava agora num mundo diferente e tentava sonhar com mundos ainda por descobrir, o odor a ferrugem e a metais distintamente forneciam-me pistas das cores do cenário que iria trazer para o lado ocidental do mundo capturado pela lente da minha camera.

(Continua…)

domingo, janeiro 13, 2008

X - PASSO EM FRENTE

Alva pétala de rosa, na fragilidade efémera em que a poiso junto ao teu rosto e deixo meus dedos acariciar a fragilidade que me ofereces.

Levanto-me e hesito em sair. Viro-me para a porta. As lágrimas abrem estradas de sentimentos que não te escondo, conheces bem a minha dor quando nos meus braços, antes das persianas da tua vida se fecharem, sentiste a foice do inferno cravada no meu rosto, o desespero de te perder. Fecho-me em mim e remeto-me em ti. Não seria um adeus mas estranhamente sentia que o fosse.

Sinto-te sorrindo quando nossas mãos se separam, me abrem de mansinho e me lês, sabendo que um passo teria de ser dado.

Seria longo o dia. Ao sair daquela porta do Hospital Militar, um novo amanhecer se fazia sentir dentro de mim, um que me abriu de novo a alma, despertei células adormecidas em mim e senti-me de novo a viver. Chegado às instalações da ONU na cidade que se encontravam germinadas dento do quartel militar apresentei os meus documentos de identificação. Aguardavam-me certamente tal a rapidez com que me cederam o livre-passe, e indicaram-me uma porta ao fundo do corredor que levava ao edifício central.

Do fundo do corredor alguém chama-me. A fosca exígua luz que se fazia, evitava a denuncia do seu autor. Fui-me aproximando a cada passo firmado no chão brilhante, denunciante de sombras diversas onde o tema principal se fazia na guerra. Insígnias e bandeiras, fotografias de campanha de outroras batalhas designadas em secretárias bem afastadas da linha da frente. É certo que a minha presença dependia delas, serias a flor negra que se transformaria no fruto das películas por mim capturadas, momentos únicos e transcendentais à minha própria existência. Continuei a passo largo carregando o meu já antigo saco de campanha, o mesmo que carregou já em si peças de roupa de Raquel, e ainda dentro dele, religiosamente guardado, a cruz de Cristo que lhe pertencia e que trazia consigo naquele dia.

“Melinda! O que fazes por aqui?” Nada me faria crer que um dia iria rever aquela face. Melinda era a melhor amiga de Raquel. Uma mulher de tez morena com descendência marroquina e influências transmontanas, cabelos pretos e olhos verdes e com claras evidências nos traços do seu rosto das origens muculmanas. Esteve com Raquel em todas as missões e partilhamos muitos serões em conjunto nas inúmeras casernas de campanha. Estivéramos afastados desde o acidente de Raquel mas sei que a visita com frequência.

“-Estou de partida para uma nova missão e assim que soube que o fotógrafo de campanha escolhido tinhas sido tu, resolvi te receber pessoalmente.” Dizia-me ela com um sorriso espelhado no seu rosto por entre dois efusivos beijos. Fora sempre assim, uma personalidade forte e extrovertida e vincada, alguém a quem poderia recorrer a qualquer momento e talvez tenha sido isso que a juntou a Raquel que sempre foi mais delicada.

“-É agradavel ver um rosto amigo e conhecido por este emaranhado de fardas que transitam por entre os corredores.” Escusei-me claramente a mencionar o nome de Raquel, estava ali com um propósito que não o de reavivar memórias que me entorpeciam a cada amanhecer. Continuamos os dois pelos corredores a conversar sobre a missão que os aguardava, os posíveis planos de acção e perigos que eventualmente os esperavam. O telefona que recebera não havia sido claro quanto ao local que nos esperava, nem mesmo eu me preocupara com esse pormenor. Mas o maior suspense seria mesmo a forma como Melinda me recebera e o diálogo que mantinha comigo, sem mencionar sequer a sua amiga que ainda permanece no hospital. Certamente não pretende também ela abrir lugar a feridas que deverão se manter fechadas.

A caminho deste novo destino que agora se fazia por entre pedras límpidas e cristalinas que nascem a cada instante do meu âmago, brotam apaixonadas da nascente do meu ser emergindo enternecidas da minha essência, seixos preciosos que rolam ao abandono dos momentos neste leito de emoções, ao sabor da corrente do imenso rio de uma nova temporária vida, arrastado numa bela cascata de sentimentos cores e aromas que desaguam no sereno mar dos meus sonhos, e me aquietam a alma. As insígnias que Melinda transporta junto ao seu peito, são cristais transparentes que nascem disformes com arestas vivas, que se limam e perdem pedaços por onde passam, ganhando vivência, burilando a resistência, ampliando a pureza, lapidando as marcas que lhes dão mais valor à medida que o tempo passa, são jóias raras, pedras eternas e preciosas, são diamantes conquistados por entre rios de lama pisados a custo.

(Continua...)

quarta-feira, janeiro 09, 2008

IX - A DESPEDIDA

São essas pinceladas de cor nas sombras abstractas da minha imaginação, brilhos deixados num por de sol de luas onde na penumbra dos sentimentos se traçam cada pormenor teu. O telefone toca. Com um olhar crítico olho para o número que se misturam em sentimentos à mercê dos meus olhos que os fecho por breves instantes. Sei que se trata do Serviço de informação da ONU. "Boa noite!" atendo eu com uma voz cávada, rouca entre contornos e efeitos visuais de profundo desagrado. Convidam-me a integrar uma nova missão humanitária onde servirei de repórter fotográfico. Num momento de cega loucura, que o tempo jamais irá apagar aceito. Tenho consciência que estarei algum tempo fora e o sentimento de culpa apodera-se de mim. A chamada terminara. Não haviam me cedido muitos pormenores mas ainda assim são segredos abertos estes que apenas eu consigo entender.

Num instante de raiva inesperada, as minhas mãos se atiram ao abismo do meu rosto destruindo o telefone nas tinta que se metamorfosam na parede do quarto. Porque haveria eu concordado com aquele pedido e abandonara Raquel? Esta incompreensão inócua, na simples escolha entre o preto e o branco abre as portas de uma realidade que à muito escondo e temo encontrar.

Na manhã seguinte um pouco mais fresco, preparo o saco de viagem, baú do meu conhecimento em busca do desconhecido dia que me espera longe de casa, afastado da alma que me acalenta o espírito e me atormenta o coração. Uma lámina trespassa-me o corpo, sinto o sabor ferroso da sua dureza mas conheço-me melhor quando envolto em faces desconhecidas. Recolho a câmara no seu estojo com o cuidado de um guerreiro samurai na partida para o seu destino. Aquela era a minha hora.

"Amanhã, não estarei aqui à hora marcada!", sussurro eu agora sentado na cama junto de Raquel. A cor dos lábios não era mais a mesma que me trouxera mundos de fantasia e sabores adocicados. "Estarei longe deste mundo de sonhos e iusões que criei para mim. Vou partir, mas sei que não vou sozinho pois levo-te comigo, levo as minhas mãos entrelançadas na saudade do teu toque e sei que na minha boca ainda consigo saborear pedaços de ti meu amor, pedaços que me ofereceste em beijos e ousadias por onde ecoa a tua voz que me acompanha na bagagem da minha pele e onde sempre te encontrarei."

Sentia-me a desfalecer como um traidor reles que abandona o seu mestre no momento em que este mais dele necessita. Mas sei que não poderia mais ali ficar. Por muito que o negasse dentro do meu eu, um desejo de partida se fazia crescer como uma flor que brota na primavera em busca de um raio de sol para de novo aquecer a face da minha paz.

"Levo-te num abraço eterno que nós demos, numa praia onde me encontraste a brincar como uma criança, onde te sorri e adivinhei a tua chegada fazendo o tempo parar, desde a eternidade. Amanhã à mesma hora, não estarei aqui meu amor, estarei aí, contigo!"

(Continua…)

segunda-feira, janeiro 07, 2008

VIII - O TOQUE

São quatro horas da madrugada e só agora regresso a casa. Necessitava de colocar aquele estúdio em ordem. Pude finalmente terminar os trabalhos pendentes e dedicar-me às aventuras do meu dia-a-dia e encontrar novas facetas e realidades para captar na minha lente. Estava visivelmente cansado. Os olhos enrugados pelo esforço da pouca luz do laboratório obrigavam-me a usar as mãos sentindo cada pedaço da parede do quarto como se de um trilho se tratasse até ao seu tesouro, a cama que me aguardava.

Desce a madrugada e o sono não chega. Deitado mesmo com a roupa dou voltas pela cama e limito-me à ignorância da minha insónia tentando fixar na minha memória o momento em que conheci o brilho do teu olhar.

Meu corpo rende-se ao rendilhado da falésia da noite que me quer desperto. Sento-me na cama... lá fora oiço passos de nocturnos comerciantes que da noite fazem sua vida. Acendo um cigarro, a companhia dos solitários quando sentem o desespero da solidão a se aproximar. Pelo quarto vejo o fumo a transformar-se numa nuvem de cristal, brilhante pela luz do candeeiro da calçada. Fecho os olhos. Lembro-me do dia enublado em que a conheci, onde te inventei por entre as cores cinzentas de um dia que se fez em palete de arco-íris, onde te moldei nas mais belas formas e onde me deste um nome escolhido entre os teus vazios. Ainda guardo a tua foto, a primeira foto do teu rosto onde te revejo, contemplando em fugazes instantes o teu sorriso que te fez tão feliz, e recordo que em troca me deste vida com a tua magia que absorvi e ainda trago espalhada pela pele.

De novo inalo um pouco mais do meu vício que me acolhe nos momentos de transtorno, onde a realidade me separa dos desejos e a confundo com a ilusão de um reino de fantasia ou um anjo rebelde perdido nas nuvens do teu céu.

Afasto-me da cama e rumo à janela. O ar fresco da madrugada acorda as minhas feições adormecidas. Um casal de namorados descem a avenida vindos certamente de uma noite de diversão, a prostituta que se encolhe na portada de um edifício, a luz fosca que se envolve pela cidade e silêncio. Noites destas são difíceis de encontrar e ainda assim, acordado, desperto para uma realidade da qual desejo fugir, sinto o perfume das tuas palavras quando estes momentos me surgiam "-Amor, deita-te ao meu lado, deixa-me te adormecer!".

Como ainda saboreio o sopro das tuas penas que se chegavam a mim gentilmente como a brisa da manhã, inundando o quarto naquela noite de Lua cheia, testemunha calada de um sonho lindo onde apenas dentro de ti, na tua boca que me silenciava, saboreava a doçura do beijo com que me trazias o teu amor.

Recordo por entre um sorriso de menino traquina essa noite. O ténue brilho das estrelas indicava-me o caminho da janela até ti, no entanto sentia-se a chegar, de toque desprendido por entre o meu corpo nú, olvido o pudor e o desejo. O luar nos meus olhos alertavam-te para a razão desprendida de mim oferecendo-me ao querer que dita o desejo.

De nós choviam beijos molhados, mimos trocados e meiguices oferecidas, no ar espalhavam-se murmúrios que as tuas mãos procuravam na minha pele, lábios perdidos em delícias húmidas na aurora do teu prazer, pleno de luz e emoções. Momentos intensos, sem limites, deixados à mercê da rotação livre dos corpos, carícias que se faziam secretas e magias inventadas, o gemido profundo sussurrado ao ouvido, os dedos entrincheirados nas minhas costas por cada prolongar de um movimento cavado na paixão.

Nesse campo de paixão, nesse abrigo de loucura, a respiração toma o fôlego, o coração apazigua as emoções ainda gritantes de um êxtase lancinante que trespassava nossos corpos colados, inebriados, culminar do deleite que nos deixa assim quase adormecidos, ao abandono dos braços um do outro.

Tenho saudades dessas noites, saudades de ti.

(Continua...)

terça-feira, janeiro 01, 2008

VII - BAÚ SELADO

Minha alma gelou e o meu corpo acompanhou-a num acto de redenção. Das minhas mãos caía o papel feito baú de onde tais palavras feitas se espalhavam agora pelo soalho velho de madeira. Sentia-me inundado por um ensejo partilhado de beijos trocados e lábios colados, delírios, loucuras, sabia-me o gosto que pairava no ar da fusão de duas partes etéreas que se desprendia de mim. Por instantes me falavas, me tocavas e no entanto sabia que para além do tempo exíguo que cabe neste instante, transbordavam emoções por onde florescia nesse jardim a leveza das nossas almas e as essências trocavam mistérios e segredos guardados apenas na voz dos anjos e agora desvendados em surdina nas palavras que me escreviam.

A doçura do teu ser entranhado em mim profundamente na minha pele como um perfume raro e divino quebrou todas as forças que em mim ainda restavam. Caí em câmara lenta nesse momento gritante de sensações que o silêncio não guarda, dos meus olhos emanavam pequenos grãos de luz que confluem numa ténue espiral de brilhos. Fechei os olhos. A pedra calcária que se fazia crescer a cada dia em mim começava a estilhaçar. Cada palavra, cada letra, cada linha, leves carícias que agora de joelhos, olhando minhas próprias mãos, sentia o enlace do fio condutor que me levava ao passado, ao teu dia em que me foste roubada, ali, em mim deitada, de olhos abertos a suplicar-me pela eternidade que nos une ainda mais um ao outro.

Por instantes a realidade mistura-se com o passado inatingível que preferia alterar, moldar em barro com as minhas mãos a tua silhueta que muito desejava ser a que me deixara tais palavras.

Preferi sentar-me e fechar os olhos.

“-Dizes que me amas, que me queres, que me desejas, mas não me ouves, pareces não ouvir a minha voz, queres calar-me com beijos que não quero dar, os teus braços envolvem-me e eu quase fujo, quero que me oiças, quero dizer-te que te amo, que estou contigo para além do que vês, não me entendes?

Recordava cada instante daquelas palavras com que havia chicoteado Raquel naquela manhã. Estava preparado para rumar a uma nova aventura, agora definitiva, mais pacífica e tranquila e oferecer-lhe tudo o que havia a oferecer. Não aguentava mais os momentos sôfregos da incerteza de a deixar de ver após um simples beijo matinal a cada dia que saía em missão. Discutimos nesse dia e nunca me havia perdoado por o ter feito.

-“Não acreditamos no mesmo amor? Não o sentimos da mesma forma? Vais para onde não quero ir, para onde a minha alma chora e tu não vês, são lágrimas que não molham o chão que pisas, lágrimas cortantes que matam lentamente a cada instante que não sei de ti, dia após dia, mas tu não as vês. Chama-me egoísta por te querer a são e salvo, prefiro-me assim a insensível!

Sabia que aquelas palavras lhe feriam o coração. Sua paixão pelas causas humanitárias levara-a a cometer inúmeros sacrifícios pessoais, a ausência da família, os dias constantes de isolamento, os perigos das balas que zumbiam por entre as paredes que se faziam em ruínas num país também ele arruinado. Mas sentia que após vários anos naquele cativeiro, havia chegado a hora de também ela ser causa humanitária e usufruir de um abraço quente, de voltar a nascer longe daquele mundo que a mecanizara, derreter-se por entre o desejo quando a tocava.

Viajávamos em veículos separados, sem uma mais palavra trocada após aquela discussão. Partíamos em direcção ao contingente principal da ONU para regresso quando a poucos metros à frente, o tempo congelou numa nuvem de fumo negra que envolvia o seu jipe. Meu mundo morrera naquele instante.

Estas palavras, as cartas que me traziam palavras de esperança, de sentimentos escondidos, eram cruéis para mim e ao mesmo tempo, uma doce lembrança de um sorriso numa sangrenta batalha interior, onde a bandeira branca não será hasteada, mesmo que morrendo um pedacinho a cada dia, até ao momento que dos meus lábios bebas de novo do cálice do meu Amor.

De novo entrei no estúdio. Fechei a portada antiga (definitivamente teria de encontrar um novo espaço sem o bolor do tempo), e abri caminho por entre os negativos e cartas diversas espalhadas pelo chão como se ali estivessem perdidas no tempo “-nota mental” disse a mim mesmo, “-arranjar quem me limpe a bagunça”. Eram horas de trabalho que ali se faziam esperar. Não podia me deixar levar pelas cartas que me haviam deixado ou de novo vaguearia no tempo e perderia horas que necessitava imenso para terminar aquele trabalho.

(Continua...)