quarta-feira, abril 30, 2008
A SEU TEMPO
Há um tempo para tudo. Hoje caminho descalço e sinto o arrepio da pedra que me beija os pés e peço para que me despertem deste sono ao meu redor. Há um tempo para tudo... este é só meu e peço que me deixem ser egoísta, maltratar a minha própria alma, parti-la em dois e esconder um dos pedaços para que um dia, seja tesouro descoberto.
Continuarei a minha história que me embala o pensamento e alimenta o espírito... no seu tempo.
segunda-feira, abril 21, 2008
XXXIII - DESCOBERTAS
No albergue que me fora oferecido, sentem-se as paredes a estremecer. Os bombardeamentos haviam de novo iniciado. Olho para as faces dos meus protectores, a dela que junto ao que presumo ser o companheiro, roçam-se levemente entre suaves forças e trocas de amor, promessas de almas que se amam no silêncio de um beijo trocado por entre olhares que tudo dizem e nada falam.
Há uma fórmula mágica de odores, perfumes e sabores que embriagam os sentidos naquele espaço. Aqueles dois despem os olhos que se encerram numa languidez inversa à explosão de emoções que eclodem por entre ternuras, a cabeça que pende sobre o pescoço e certezas que estarão juntos mesmo que atravessando uma nascente turva.
Por momentos o tempo encontrou ponteiros ensonados, nada mais naqueles rostos fazia sentido à excepção do doce e borbulhante serpentear de sensações que lhes percorria o corpo, o frio na barriga quando se beija pela primeira vez, a tremencia disfarçada das mãos dormentes que desenham no ar as formas de um amor simples e sincero. O mundo ajoelhava-se ao seu mestre, podia sentir a essência daqueles dois, a sintonia do seu sentir, a magia de um amor em guerra, perdidos dentro de lembranças que o tempo não apagou da pele... sinto-me como se pelas margens de um rio descesse montado no pulsar selvagem de um coração que suspira, um privilégio assistir pelo avesso às carícias mascaradas de desafio, e eu ali, ausente nos dedos da minha câmara.
Suspiro... no corpo ausente de mim que reconheço cansado, encontro naquele momento a curva ascendente das minhas próprias emoções e perturbações. Branco como as paredes que me acolhem cerro os lábios e olhos pesados com que eu próprio me olho do alto dos meus desejos e encontro as duas mulheres que agora pertencem às páginas do meu pequeno mundo. Apenas uma contém o beijo que se esconde por entre as palmas das minhas mãos e que anseio em descobrir como um tesouro encantado, o toque longe do tempo que me enleia.
Ao olhar por entre as grades daquele espaço onde outrora um vidro separava a vida lá fora, ganho asas de vagabundo sem rumo e deixo que me perca em sensações que vejo derramadas em cascata sobre a minha pele nua de mim. Imagino e quase consigo sentir na boca o doce mel que a tua língua inventa quando toca a minha, e ris-te porque sentes o que eu sinto, a pressa em te beijar, o desejo que desfaz as malas do passado e percorre noites longas de insónia, sabes-me a sussurrar-te partes de mim que conheces e outras que descobres. O sangue pulsa nas veias, entrega-se ao espaço deixado na ternura, o corpo exausto do prazer que não teve, responde à alma e os olhos abrem-se com a imagem da terra prometida por onde a saudade e o sorriso renasce no rosto da que amo, a lembrança viva do que eu sou e quero para mim.
No ar repentinamente desvanece a música dos murmúrios loucos, a realidade adormecida acorda-me lentamente como um sopro sentido por entre o pescoço. Olho de novo o casal que me abrigara e o olhar que ainda há pouco se inundara de um amor imenso, fita-me assustado. Não percebo e sua razão, e assim fiquei por instantes me passam como horas por entre dedos finos, e tento, tento soltar palavras de sossego e nada me sai... olho as minhas mãos e um céu cinzento se desenha por entre o rubro vermelho que nelas cai como ondas que se esbatem na quilha de um navio à deriva. Sinto a brisa quente do meu sangue que cai como rosa cansada. Não percebo, a confusão instala-se aos meus olhos e pergunto-me qual a parte desfalcada do meu corpo que havia sido desfolhada com uma qualquer bala perdida...
quarta-feira, abril 16, 2008
XXXII - A PROCURA
Soam os alarmes de saída do pelotão, apresso-me para a caravana que sai em busca e auxílio das populações mas és tu a razão pela qual as faces destes soldados se vestem de guerreiros. Entro no veículo e instintivamente fecho os olhos. Solto uma prece de fé, um pedido, um desejo que tudo volte a ser como era, contigo ao meu lado. O silêncio é rainha porque o rei é ausente. A caminho das portas da cidade tudo o que encontro é o desespero e destruição, caravanas da cruz vermelha a socorrer feridos e a esconder os mortos. “Meu Deus!” saíram-me estas palavras sem mesmo as pensar. As atrocidades que ali jaziam naquelas estradas eram por demais horrorosas, crianças perdidas, feridas, corpos irreconhecíveis ao ser que se diz humano, o cheiro intenso, uma mescla de odores de ódio queimado materializado em objectos desmembrados que não me atrevo a reconhecer como corpos, caso o fizesse o meu estômago não aguentaria. Esta frieza que reconheço em mim é agora bem vinda.
Escondo-me na saudade, na falta que sinto na tua ausência e penso como será possível alguém entrar na vida de outro assim tão repentinamente com uma paixão incontrolável, oferecendo sonhos que imaginei para uma vida inteira e sentir que tudo isso é recíproco. Eu queria voltar atrás só para ficar contigo, mas quero me apressar neste presente para alcançar o futuro onde te resgatarei do alheio e apresso-me a dizer, oferecer-te a minha vontade de ser o que ambos quisermos, mesmo que isso signifique ausentar-me do perigo.
O inferno era já ali à frente. A caravana pára e os estrategas reunem-se, iremos nos dividir em grupos e penetrar na cidade como estranhos num casamento, cuidadosamente e alienados, tomando o pulso às ruas e às vozes que saem das armas que cospem fogo e balas perdidas. Ardo em arrepios que me consomem a pele e adivinho a loucura que se aproxima sem ninguém me ter contado o desarrumado que visitamos.
Os grupos dividem-se e o meu leva o rumo do sudeste da cidade, escuto o ritmo continuado do vaivém das poderosas armas, este conflito dura já à tempo demais e perco-me na tentativa de compreender a razão do mesmo e os porquês que se diluiram já com o tempo passado. Admiro no entanto aquelas gentes que dali fizeram os seus lares e se recusam a procurar o abrigo do sossego. São pessoas como outras quaisquer, mas nos seus rostos vemos os traços da resistência, a persistência, não consigo encontrar a linha da derrota e habituaram-se a fazer daqueles dias uma normalidade estranha. Parecem-me hipnotizados. Assim como aparecem, desaparecem, vultos invisíveis que se escondem por entre as paredes esventradas, a sensação é estranha, como se no seio de uma selva todos os animais fizessem silêncio, ficando à escuta do perigo que se aproxima.
O medo invade-me pela ponta dos pés e a adrenalina desperta-me os sentidos. Sei que estamos em perigo mas não o encontro em lado algum. Avançamos lentamente pelas avenidas, apesar de blindados, os veículos são isco fácil num mar de tubarões. Ninguém se atreve a sair, marchamos passo a passo em linha recta tal como o jogo de criança “siga o líder”. E então tal como um presente envenenado, rasga-se o silêncio e somos alvo dos atiradores furtivos apesar de estar-mos perfeitamente identificados como elementos em missão de paz. Institivamente agacho-me, oiço o zumbido das balas que encontram na massa blindada das portas o seu repouso final. É arrepiante saber que tudo o que nos separa são centimetros de aço, e pensamos por breves instantes na fatalidade que pode acontecer. O condutor acelera, não pode permitir aquele chuveiro contínuo a cair sobre nós. Passamos a estar dentro de uma qualquer misturadora de sumos tais sãos os abanões com que nos deparamos nas curvas apertadas que o condutor desenha com o volante do veículo. O operador de rádio reporta a nossa localização numa voz arrepiada e apressada. As suas indicações não são claras mas percebe-se que rumamos a norte, agora para sudoeste numa rua apertada e sem saída. A travagem repentina atira-me para cima de um colega soldado. O veículo recua e estamos claramente encurralados dentro daquelas portas. O condutor procura a toda a pressa um abrigo, um local onde possa parar fora do alvo das miras telescópicas dos atiradores furtivos.
Pelo rádio ouvem-se relatos idênticos, o desastre é geral e todos procuram abrigo, a vontade de ali ficar evapora-se a cada segundo que passa mas não desistirei de procurar Ricardo.
(Continua...
quinta-feira, abril 03, 2008
XXXI - DESMASCARADO
Há dias assim, em que correndo passeio fora nos apercebemos da velocidade rara e dimensão inventada das nossas vidas. Olho para o lado e tudo gira a uma velocidade infernal, abstenho-me de pensar. Para piorar a sensação era o meu aniversário e por isso esperava já o impulso da alma que me fechava a porta a um velho ano. Pela primeira vez iria comemorar sozinho, sem amante ou confidente, o melhor amigo em viagem novamente. “Que espaço é este onde me mantenho fechado em troca da minha liberdade?”, pensava eu enquanto abria as portas da galeria.
Novamente o ritual, a forma encontrada pelo meu ser em apreciar e descobrir algo de novo nos quadros expostos, nos momentos únicos capturados através de uma lente, as faces ruborizadas a preto e branco onde na dúvida se evidenciam ao olhar de um fotografo indiscreto. Gosto particularmente do trabalho do Ricardo. Sempre que revejo as suas fotografias, oiço, vejo, sinto, mas não estou lá, choca propositadamente com o tradicional, contorna o arrojado indiferente como a chuva que nos molha e ensopa a alma. Não é muito apreciado porque nem todos sabem-lhe reconhecer os afectos que o preenchem e a crepitação da alma que devora tudo aquilo que sente até ao limite. É um explorador nato dos sentimentos alheios.
Não recebia notícias dele desde que se havia ausentado à alguns dias e curiosamente no dia em que partiu havia recebido um telefonema mesmo antes de fechar a galeria, solicitando para reservar o seu trabalho que estaria exposto, principalmente uma foto, um auto retrato. Estava nessa altura no seu auge emocional, a carreira deslizava como uma faca por entre manteiga derretida, havia encontrado uma mulher com quem partilhar os seus dias, e como tal, decidiu revelar um pouco a máscara por detrás da lente da sua Canon. O estranho ainda no entanto era alguém querer comprar o seu trabalho, como tinha já tido a oportunidade de lhe referir. Voltei para a o meu canto da sala, o brilho do dia iluminava já a entrada, os raios de sol formavam um curioso arco vindo das grades superiores da fachada dando um ar um pouco imperial ao espaço.
A porta abre-se e de lá surge um vulto feminino, proeminente nas suas formas majestosas e possessivas de olhares alheios. Trajava um longo vestido preto com frinjas verticais branqueadas, uma autêntica fotografia de cartaz. Os passos eram dados com convicção, cabelos longos, bem abaixo dos ombros e doirados, chapéu branco de abas largas e uma pequena mala debaixo do seu braço direito. Aquele figura parecia ser uma personagem de hollywood, uma celebridade. Aproximou-se e perguntou pelo director da galeria – “Fala com ele mesmo, João de Bettencourt ao seu dispor!” – exclamei eu numa pose tradicional e com textos pensados ao pormenor. Alguém que dedicara o seu tempo de manha a se preparar daquela forma, era sem dúvida merecedora de palavras cuidadas e atenciosas.
- “Muito prazer, conforme falamos telefonicamente, venho resgatar o trabalho fotográfico de Ricardo Torres e estou preparada para ser generosa na sua aquisição”.
Não sabia se havia de ficar perplexo com aquelas palavras ou a evidente frontalidade daquela mulher que ali estava à minha frente. Pela forma como aquele discurso fluiu, é certamente alguém que está habituada a conseguir o que pretende. Assim sendo optei por a levar para junto do espaço onde as fotografias do Ricardo estavam expostas, necessitava de explorar um pouco mais sobre quem esta mulher seria e o porquê do seu interesse naquele trabalho. A minha curiosidade era maior que o acto comercial em si.
(Continua...)