segunda-feira, junho 23, 2008

XXXV - INTEMPORAL

Acodem-me as palavras numa febre subtil de intenções, frutadas, quentes, embriagantes, como um bom vinho rosado e encorpado a exalar sumarentas delícias das mais puras castas de uvas!

Ardem-me as intenções na carícia breve dos gritos que ecoam dentro do meu peito e cujo destino se faz apenas em um só sentido, (in)voluntário, (im)perceptível, (in)contido... como a ténue deslocação do ar do mais débil pestanejar. O olhar solta-se entre aqueles que ali se juntam a mim, arde-me o atrevimento do ser, do querer e do poder, no formoso portal dos lábios em flor, rubros, ávidos, trémulos de um desejo maior que ainda ninguém se apercebeu, milimetricamente controlado ao rigor do destempero a que ascendo em espirais de (in)dissimulada agonia pelo desconhecimento do seu paradeiro.

Sinto as entranhas a arder, ardem-me os lábios por um (im)provável toque que me ascende ao virtual bramido de um beijo. Inalo o pó que nos abraça num acastanhado sabor de guerra, estendo a mão num momento etéreo, fecundo, (in)submisso onde o pensamento selvagem já adivinhou, ousado e livre, perfilado pela cumplicidade daqueles que ali junto a mim, por detrás de sete véus de terror e de refinadas transparências, uniam-se a uma só missão.

Arde-me a fragância do beijo húmido enquanto percorro os corredores explosivos de um desconhecido labirinto na tangencial amplitude do céu da boca como inferno em chamas... o purgatório que agora atravesso carregado entre braços por quem desconheço, mas corremos impacientes, enquanto a abrasiva dor me atravessa a pressa da saliva morna que se vai secando com o tempo, misturada no sabor a mel e a sangue vivo, no travo amargo ao fel da cupidez.

Ardem-me os olhos, a pele e todos os sentidos, abruptamente inflamados, inadvertidamente despertos, impregnados de uma inexplicável e indecorosa urgência, como que rabiscos fugazes escritos na pele... talvez seja este o sabor da morte, do cessar dos sentidos de uma ceara dourada numa planície ardente de promessas por cumprir.

A minha vontade desabrigada deixa-me indefeso na penumbra das intenções de quem ali se apressa a tentar remediar a agonia que se me apodera das linhas do meu rosto. Mas a breve carícia do fogo no desassossegado daquele olhar e o mar encrespado que crepita o galgar furioso do sangue que me escorre das muralhas do meu recato, descobre-me lugares inexplorados no desnude da lisura da pele que ali me toca e retoca, o tecelão que compõem a sua malha. Oiço breves palavras e num breve instante aquele que se fazia do meu casulo é transportado rapidamente para fora daquelas paredes. “Onde estou? - perguntava-me num tom de murmúrio de voz que se quer ouvir mas secreta e cansada. O silêncio das vozes era tudo o que me respondia, e aquele hálito doce e quente, a aflorar-me a nuca, a percorrer-me de lés a lés, o pescoço alto de garça até onde outrora crescia cabelo, a colar-se-me de mansinho ao desalinho das rugas e da boca faminta... era o frenesim intenso da loucura a quebrar-me a resistência. Abro os olhos de tempos a tempos e observo ao largo avenidas de paredes esburacadas onde outrora se penduravam cacifos de vidas e admiráveis lagoas cheias de vida.

Passeavamos certamente pelo lado mais turco da cidade, reconhecia por breves momentos certas frases, algumas teimosas placas que ainda ali existiam, como a de um restaurante, o “Inat Kuca”, pelo seu aspecto exterior teria sido uma antiga casa turca remodelada para aquele efeito e que ali ainda existia junto ao rio.

Somente o abismo esfíngico e hipnótico dos meus olhos sabiam para onde me levavam, as mãos exímias, de artífice do amor, feiticeiro do momento que guardava sagradamente na película firme da minha camera, abertas em concha e rubras pela crime, estendiam-se ao limite do horizonte numa harmoniosa linda da delicada cintura do teu rosto.

(Continua...)

domingo, junho 01, 2008

XXXIV – UM CRIME PERFEITO

Numa orgia de cheiros e sensações, sabores que me percorrem a saliva e se perdem por entre a inquietude do ar que inspiro, quebram-se as forças qual pétala molhada em manhã orvalhada. O peso do universo cai largo no meu véu banhando-me num arrepio de doce ternura inversa à sua razão.

Caiem as pétalas por onde a minha voz viaja num vermelho rubro de paixão por onde viajo incauto na noite misteriosa e pálida do meu rosto. O meu corpo de novo estremece neste som que ondula num louco turbilhão dentro de mim. Deixo-me cair, tocar com os joelhos longamente nas lajes que se desenham por baixo de mim exalando um perfume de derrota por onde os girassóis de outrora polvilhavam ao meio-dia milhares de pólens reluzentes numa dança frenética e reluzente na minha pele em busca da tua.

Solto uma gargalhada, seguram-me a mão contemplando firmemente os meus olhos. Sussurram-me palavras enfeitiçadas como que anestesiando-me com um brilhozinho nos olhos. Sei que estou ferido, sinto o despertar da dor que me atravessa o impossível e proporciona uma autêntica odisseia dos sentidos, o despertar de novas sensações. Transcendente é uma palavra demasiado frívola para descrever algo que não tem precedentes e que me envolve numa névoa misteriosa e incompreendida de uma forma tão imprevisível.

Questiono o porquê de agora me quererem afastar de um número de probabilidades que aumentavam nitidamente em direcção à fuga do meu exílio, e de repente, o cheiro a carvão queimado, feito em brasa, olho nos olhos de quem me deu guarida e encerro os meus não sabendo o que esperar daquele momento.

Há palavras que dão vontade de mastigar, saborear a textura inocente que me entorpece os sentidos. O arrepio que se me cresce dos pés é novidade para mim. O teu rosto é a sombra que me povoa o pensamento neste instante e confesso que nunca me saíste da cabeça. Chove no meu rosto gotas de tristeza, alecrim murcho pela névoa de um inverno rigoroso. Quero acreditar que verei de novo os nenúfares dos teus olhos e a água doce do teu sorriso no qual sacio a minha sede. Cansaço, é o peso do universo que agora sinto em mim e tudo o que me acalenta este momento é o descanso desmesurado que sinto necessitar.

Um cinzento calado invade a cidade e estremeço. Desço as escadas do meu olhar e fito as mãos que se avermelham como se um balão de ar quente tivesse por ali passado e queimado a química da alma. “Ricardo!” – solto em voz trémula antecipando um calafrio que jorra da minha fonte e se faz rio na tua foz.

Ali parados num deserto de nós moscada nada poderia fazer. Num átomo de fé abro a porta do veículo e salto para o lado direito do inferno em busca de uma colina protectora. Corro, corro e corro como atleta de maratona acreditando que o céu é mais abaixo e por isso não tenho medo de cair. O meu coração está a meio da ponte, sinto o vento que sopra de norte e desce em direcção ao sul, a brisa mostra-me o caminho e sigo-a como aprendiz carente das palavras do seu mestre.

Encontro um casulo ali mesmo, um pouco mais abaixo, e olhando para trás, surpreende-me a distância percorrida. Oiço o motor a trabalhar e lá de dentro saiem três soldados que correm pelo lado esquerdo do inferno junto as paredes do purgatório. São alvos perfeitos de quem se esqueceu das flores em punho. Oiço o zumbir e o estalar das balas que se encontram com a parede e estilhaçam uma quase vida. Instintivamente levo a mão à cintura e rasgo o silêncio do meu espaço com o premir do gatilho da minha arma de segurança pessoal. O fogo saiu do cano de aço gélido por seis vezes, e um crime perfeito ganhou forma.

Seguros e ofegantes por terem de correr um longo espaço que os separava da minha silhueta, olham-me sem as palavras soltas de espaços e exclamações, descongeladas pelo calor de quem atravessara o inferno, e sinto-me graça das suas orações.

Escuto o vento sem arranhões e sei que é chegada a hora de partir em busca de quem me faz falta.

([sim estou de volta] Continua...)